quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A GLÓRIA DE JUCA ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA (Samuel Rangel)

Juca era um ator de uma pequena companhia de teatro mambembe, viajava pelas cidadezinhas do interior apresentado suas peças. E nem bem desembarcava em uma cidade, já estava de partida. Por isso Juca não tinha muita sorte nas coisas do amor. Seus relacionamentos eram resumidos aos poucos encontros com essa ou aquela moça do público, que encantada pela arte, caía em suas graças. E foi assim que um dia Juca chegou à cidade de São João da Prata.

Dessa vez a companhia ganhava as glórias de um palco, o da Sociedade Cultural Desportiva e Recreativa Pratense, e pela primeira vez naquela turnê, iria apresentar a sua peça em uma temporada de cinco dias. Todos da companhia ficaram encantados, e se reuniram para ensaiar a peça uma última vez antes da estréia em São João da Prata. Queriam fazer um belo espetáculo para os pratenses.

No dia da estréia, todos ocuparam o palco com muito capricho. Quando Juca entrou, concentrou-se tanto em seu desempenho que nem pode notar Morena, sentada na terceira fila de cadeiras. Morena era uma belíssima moça, que ganhara esse apelido pelos seus longos e cacheados cabelos. Era realmente uma mestiça capaz de levar ao mundo a beleza da mulher brasileira.

Ao final da peça Juca percebeu Morena, e eles trocaram olhares. Juca ficou ali estático diante de tanta beleza, mas Morena veio até o palco e pediu um autógrafo a Juca. Juca jamais tinha dado um autógrafo em toda a sua carreira. Morena saiu do salão do clube andando lentamente. A cada dois ou três passos, Morena olhava para trás, e antes que passasse pela porta que levava à rua, sorriu suavemente para Juca. Juca ficou encantado com tanta beleza e um suspiro colocou para fora todo o seu juízo. Juca então era vítima de uma paixão a primeira vista.

No Hotel, enquanto os atores da companhia comentavam o sucesso da peça, Juca ficou ali sonhando com a morena que lhe havia tirado o fôlego. Ele pensava em uma forma de reencontrar Morena. Ele tinha ao menos que falar com ela mais uma vez. Juca não dormiu naquela noite.

No segundo dia de apresentação Juca entrou no palco olhando para a terceira fileira. Procurando por Morena, mas ela não estava lá. Em sua encenação Juca se concentrou muito, até que percebeu sua linda morena bem ao centro, na primeira fila, quase debruçada no palco. Juca interpretou a peça quase que somente para ela. Os únicos momentos em que seus olhos se desviaram dela foram naqueles em que a cena exigia. Sempre que seus olhos eram livres, eles mergulhavam nos olhos da encantadora mulher.

Após a peça, Juca se adiantou em ir falar com a mulher. Mas o diretor da companhia reuniu os atores para analisar a apresentação. Juca não teve tempo de ficar muito com Morena, mas ao menos já sabia o seu nome. Na reunião o diretor elogiou o desempenho de Juca, e deu-lhe a autorização para improvisar em suas cenas.

Mais uma noite que Juca se revirou entre as cobertas, e lá estava ele novamente no palco. Morena assistia à peça pela terceira vez, e na primeira fila novamente. Na cena em que seu personagem fala de sentimentos, Juca usou de todo o seu talento para declarar-se à Morena. Ela ficou lisonjeada. Ao final da peça ele tentou falar com ela mais uma vez, mas ela pediu desculpas e saiu correndo, enrubescida pela declaração de Juca.

Durante a noite, Juca não dormiu novamente. E na quarta apresentação tinha a expressão do cansaço e da ansiedade. Cansado por sonhar acordado, e ansioso pela visão de sua Morena. Quando entrou ao palco, foi logo olhando para a cadeira da primeira fila. Não a viu. Procurou pelo salão inteiro e não a encontrou. Juca fez uma péssima apresentação naquele dia. Sua inspiração não estava lá. Sua musa havia o deixado. Ao final, um bilhete entregue por uma desconhecida trazia o recado.

Querido Juca

Queria muito ir te ver, mas tive que ficar cuidando de minha irmã. Perdoa-me que amanhã vou te ver com todo certeza.

Um beijo para você.

Ass. Morena.

E Juca voltou ao hotel com aquele papel na mão. Por algumas vezes chegou a levar o papel ao rosto para sentir o suave perfume das mãos de Morena. E Juca dormiu agarrado ao bilhete.

Era a última apresentação, e a companhia estava eufórica com o sucesso. O diretor chamou Juca antes da apresentação e lhe perguntou o que havia acontecido no dia anterior. Após algumas palavras evasivas de Juca, o Diretor falou a Juca: Esta é a última apresentação aqui. Eu quero que você brinque com o público, e na cena do Baile, você pode até convidar alguém do público para dançar. Juca ouviu aquelas palavras como se fossem a voz de um anjo.

Juca entrou em cena e viu Morena na primeira fila novamente. Ali interpretou a paixão de seu personagem e a sua ao mesmo tempo, sem conflitos, em perfeita harmonia de ator e personagem. Misturou fantasias e realidades de forma tão incrível, que o público veio às lágrimas. Quando chegou a cena do baile, Juca foi até Morena e convidou-a a dançar. Morena nem titubeou. Era como se os dois estivessem a sós em um salão de baile. E Juca declarou para Morena sua paixão enquanto dançava. Ao final da música, Juca beijou caprichosamente a boca de Morena, e se demorou a recobrar. O público levantou-se e bateu palmas. Juca então nem acreditava no que estava acontecendo.

Ao final da peça, o público subiu ao palco, e enquanto alguns abraçavam Juca, outros afastavam Morena. Desesperado Juca viu sua paixão sumindo em meio ao público eufórico, mas sem que pudesse fazer nada, seu diretor o arrastou para a coxia e comemorando lhe deu os parabéns dizendo: Juca meu amigo. Com sua atuação conseguimos um contrato de um mês na Capital. Ensaios pagos, patrocinadores e tudo o mais que a companhia merece. Meus parabéns. As coisas já estão no ônibus e estamos de partida. O assessor do prefeito vai conosco. Estamos de partida.

E Juca foi arrastado para dentro de um luxuoso ônibus, onde foi aplaudido pelo elenco. Juca olhava pela janela e viu sua Morena acenando com lágrimas nos olhos.

Juca então desceu e disse a Morena que voltaria em breve. Apenas cumpriria o contrato na capital e juntaria algum dinheiro para retornar para São João da Prata. Morena entregou-lhe em um papel de pão uma declaração de amor e seu endereço. Beijaram-se apaixonadamente e Juca partiu para o sucesso.

Trocaram cartas todos os dias.

Em Curitiba Juca cumpriu o contrato, e em suas interpretações imaginava Morena no público. Assim conseguiu atuar tão bem, que ao final da temporada de um mês, chegou um convite para apresentar a peça em Salvador, durante um ano inteiro.

Porém, Juca então olhou para o seu diretor, comunicou-o que estava se desligando da companhia e indo para São João da Prata, ter com sua Morena. Seu diretor ficou estático não acreditando no que estava ouvindo, pois Juca havia realizado o sonho de qualquer ator. O diretor só entendeu que Juca precisava realizar o seu sonho de homem mais do que de ator. Tudo ficou claro quando ele deu-lhe as costas e saiu sorrindo e falando: Vou ver Morena. Vou ver Morena. Vou ver minha Morena.

E foi tão rápido quanto era forte sua ansiedade. Juca embarcou chegou antes da carta, e por isso não havia ninguém esperando quando desceu na rodoviária de São João da Prata.

Juca entendeu. E foi para o hotel se hospedar. Não chegou a desfazer as malas. Simplesmente escolheu sua melhor calça, a sua melhor camisa, tomou seu banho demorado, colocou seu perfume da Natura e foi para o endereço onde se correspondia com Morena.

Lá chegando, era um salão de beleza. Quando entrou, viu Morena fazendo as unhas de uma senhora. O silêncio tomou conta do local, e foi interrompido quando as meninas que trabalhavam no salão começaram a gritar e bater palmas. Morena saiu correndo e pulou sobre Juca, beijando-o com toda a paixão e saudade.

Antes que pudessem se separar, a dona do salão dispensou Morena do trabalho. Sorridentes e agora juntos, saíram os dois de mãos dadas andando pelo pequeno calçadão de São João da Prata. Sentaram-se no primeiro bar aberto, e ali ficaram a namorar. Juca disse da proposta de ir para Salvador, e perguntou a Morena se ela poderia ir junto. A resposta foi sim. Era como se o destino tivesse roubado a batina de um padre e feito os dois casados naquele momento.

Então Juca se deleitava com realidade. E todos ali no bar conheciam a história, paparicando o casal, e dando a Júlio as glórias de um ator consagrado. Pessoas que jamais tinha visto mandavam servir cervejas ao casal para comemorar as bodas com o destino. Beijos, abraços e carinhos. Sorrisos largos e encantados. Juca estava feliz em toda a plenitude de seu sonho.

De olhos fechados enquanto beijava Morena, ouviu uma voz grossa e forte chamando por Morena. Juca ficou atordoado com aquilo. Quando conseguiu abrir os olhos, viu um enorme cidadão, forte como um touro, botas e chapéu de peão, e um olhar de sangria. Juca não entendeu.

O homem veio até Morena e a puxou pelo braço, levando-a até o outro lado da Rua. Todos no bar ficaram em silêncio. Juca achou que seu dever de homem, era defender sua mulher. E quando se dirigia para o outro lado da rua, foi interrompido pelo dono do bar. Ele disse a Juca que não deveria se meter, pois aquele era o Bigorna, um capataz de uma grande fazenda conhecido pela sua força, com um vasto currículo de vítimas que se meteram com ele. Juca desceu o pouco de saliva que tinha na boca pela garganta, e sem respirar, viu quando Bigorna o olhou.

A paixão lhe tirou o Juízo. Atravessou a rua e interrompeu a discussão. Bigorna fechou os punhos e o olhou. Morena então chorando disse a ela que não interferisse. Juca insistiu, mas Morena mandou que Juca voltasse ao bar. Juca, consciente de que havia cumprido o seu papel, voltou ao bar e encostou-se no balcão para não dar as costas ao Bigorna.

O dono do bar que atendia ao balcão veio até Juca e aconselhou-o a ficar quieto, pois Bigorna era noivo de Morena. Juca não entendeu, e o dono do bar explicou melhor. Embora Morena não o quisesse mais, Bigorna é quem decidia o futuro de Morena, e como ele tinha uma vastidão de proezas que envolviam sangue e ossos quebrados, ninguém tinha coragem de interferir. Além da força dos braços de Bigorna, ele tinha a loucura da paixão pela moça, e por ela faria qualquer coisa, inclusive, mantê-la consigo independentemente da vontade dela. E ali ficou o dono do bar contando histórias de Bigorna, que mais pareciam histórias de terror.

Depois de algum tempo, Morena atravessou a rua chorando. Quando Juca vai até ela e lhe pergunta o que aconteceu, Morena lhe diz que Bigorna foi para a casa buscar um revólver para matar os dois. Juca então consegue imaginar a foto do casal caído ao chão, envolto em sangue, estampada na primeira página do Correio da Prata. Juca fica desesperado, e o choro de Morena aumentou seu desespero.

Mas quando a corda começa a arrebentar, você não se preocupa com quem está para baixo de você. E o choro de Morena começa a sumir diante do desespero de Juca. Ele precisava salvar a sua vida. Sim, ele precisava salvar sua própria vida. Ele não tinha culpa de Morena ter lhe ocultado a história com Bigorna.

Quando o desespero de Juca veio para a sua boca, ele perguntou ao dono do bar onde morava o tal Bigorna. Ao saber o local, Juca saiu correndo a toda. Ele tinha a intenção de falar com Bigorna. Por mais forte que fosse a surra que levaria, era bem melhor do que levar tiros.

Por isso suas pernas correram mais do que nunca. Mas para o seu desespero, não encontrou Bigorna. Vendo um cidadão que lavava o carro na rua, perguntou com olhos furiosos onde poderia encontrar Bigorna. O cidadão disse que não sabia. E ele insistiu, mas não adiantou. Voltou ao bar para pedir melhores informações, mas quando chegou, foi aplaudido de pé.

O dono do bar pediu a palavra e começou a elogiar a atitude de Juca.

“Gente. Eu vi tudo, e quero mais uma salva de palmas para esse homem de verdade. Por mais que eu tenha falado o quanto Bigorna era perigoso, Juca saiu no encalço dele colocando-o para correr. Finalmente alguém acabou com o Bigorna. A partir de hoje ninguém mais vai ficar em silêncio. E vamos chamar a polícia para esclarecer todas as mortes das mãos de bigorna. Ele não vai mais fazer isso.”

Então Juca percebeu que ninguém havia entendido usa intenção. Eles acharam que Juca correu atrás de Bigorna para pega-lo e nem perceberam que sua intenção era diminuir o seu prejuízo a não mais que alguns socos na cara.

E então o povo pratense voltou a aplaudir. Juca tinha virado um herói. Mas Juca não havia entendido o engano. Foi quando reconheceu dentre os presentes o rapaz que lavava o carro. Ele levantou-se e começou a falar:

Eu via cara do Bigorna. Quando eu tava lavando o carro e falei que o Juca estava procurando por ele, o Bigorna pegou o rumo da fazenda e não voltou mais.

Dentre todos que estavam ali, não havia ninguém mais feliz que Morena. Agora Morena estava livre, pronta para amar Juca em toda sua existência. Seu amado era um herói em São João da Prata já no primeiro dia de sua chegada. E Juca de certa forma se embriagou com a sua glória, ainda que ela fosse uma farsa. Com mais goles de cerveja, passou a contar histórias de peripécias onde sempre colocava um gigante para correr. Contava epopéias de surras em malfeitores, e lições de cinta em machões de cozinha.

Mas o bar foi esvaziando. As histórias foram se cansando. E Juca está ali, na cidade de Bigorna, vivendo de falsas glórias conquistadas nas costas dele. O Anjo da guarda, fazendo as vezes do juízo, sussurrou uma pergunta no ouvido de Juca. ATÉ QUANDO ESSA FARSA VAI DURAR?

A garganta de Juca secou novamente, e ele percebeu que aquela peça só tinha final feliz até o primeiro ato. No final, a tragédia grega seria a maior probabilidade. Então Juca pediu licença a Morena e disse que precisava ir ao hotel, pois queria tomar um banho e trocar de roupa.

Juca foi ao hotel, pegou as malas e levou-as até a rodoviária. Lá ele comprou uma passagem para Curitiba em um ônibus que partiria as 23:45 h. Para esconder seu plano, deu cinco cruzeiros para que um menino cuidasse de sua bagagem até a meia-noite e voltou para o bar. Ao menos, no bar ele ainda tinha alguns novos amigos, e se necessário fosse, poderia se esconder atrás de alguém se Bigorna retornasse para cumprir as juras de morte.

Sentou-se no bar e continuou ali com Morena. Tinha no rosto a expressão de um herói, mas no peito os sentimentos de um covarde. Assim se passaram mais duas horas. Quando eram onze e quinze da noite, Juca disse a Morena que estava cansado e iria dormir. Foi com Morena até a entrada do hotel. Morena esperava um convite para subir que não aconteceu. Juca disse que precisava descansar, e que a veria na manhã seguinte.

Morena deu-lhe as costas e saiu feliz com a proposta de vê-lo no outro dia. Quando Morena dobrou a esquina, faltavam menos de cinco minutos para o embarque. E Juca venceu quadra a quadra o caminho da rodoviária. Quando lá chegou, o ônibus estava manobrando para sair. Desesperado Juca mostrou o bilhete de passagem, e a porta se abriu. Juca colocou o pé direito no estribo, olhou para a rodoviária de São João da Prata sabendo que nunca mais voltaria para lá.

Juca esqueceu Morena.

Dizem que Juca anda apresentando suas peças por aí, e não mais se apaixonou por ninguém.

Morena? Morena esta casada com Bigorna e mora ainda em São João da Prata, mas hoje parece que é ela que manda em casa.

Tudo isso não aconteceu, mas se aconteceu foi bem parecido e não igual.

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