sexta-feira, 26 de outubro de 2007

ALGUMAS MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA (Samuel Rangel)

Falam das deliciosas memórias de infância. Algumas são deliciosas não por si só, mas são saborosas em função de terem a capacidade de nos levar pela mão até nossa infância. Deliciosa Infância.
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Lembro-me de meu pai fazendo papagaios aos fins de semanas, ou raias como aprendemos a chamar. E Curitiba acabava logo ali. Quando subia até a esquina da Rua Jerônimo Durski, lembro-me dos pinheiros que se estendiam até bem longe e em meio deles, aos olhos mais atentos, erguia-se a torre de uma igrejinha, que muito mais tarde viria a saber que era a Igreja de Campo Comprido.

Éramos criados no rigor da disciplina dos homens de bem. Meu pai, um respeitado professor estadual, conhecido pelos alunos do Colégio Rio Branco, Colégio Professor Cleto e tantos outros, como um diretor extremamente rigoroso e justo, e isso trazia alguma referência para nossa família.

Meu primeiro contato com a dura realidade e com os limites de minha infância, deu-se exatamente na frente da minha casa, onde eu e meus três irmãos mais velhos (Sérgio, Sandra e Silvio) corríamos em meio à barroca. As pernas mais longas de meus irmãos permitiram a eles concluir com sucesso o salto sobre a valeta que cortava o terreno, ao passo que eu, vi pela primeira vez o mundo de baixo para cima.

Passado algum tempo, lembro-me do meu primeiro dia de aula, no Jardim da Infância do Grupo Estadual Júlia Wanderley. Fui gentilmente recebido pela professora, que me acomodou dentre duas belas meninas. De uma delas eu recordo o nome até hoje - Ângela. Como eu ainda não sabia nada da arte do amor, abaixei a cabeça e passei uma tarde inteira chorando, lamentando copiosamente a ausência de minha mãe.

Ali, naquele colégio, passei a ter contato com crianças diferentes, criadas de forma menos preocupada, que aos poucos tentavam me ensinar as malandragens da infância. Minha ingenuidade impedia meu avanço nas malandragens, e toda vez que eu tentava fazer incursões ao mundo da arte acabava por ser descoberto.

A sala da Dona Leda, Diretora da escola na época, já me era muito familiar, e lembro que me assustava a imagem de um cabideiro de parede, tal qual o telefone preto que entregava minhas artes para meu pai. Aquilo me fazia subir um calafrio pela espinha, e o cheiro de cera do chão do colégio aguça o sentido dessas lembranças. O uniforme era xadrez de branco e azul claro.

Passei pelo primeiro ano sem muitas lembranças a relatar, pois os acontecidos no ano seguinte acabariam por marcar de forma mais acentuada a minha memória. Não consigo relacionar de forma lógica os fatos, portanto prefiro apenas dizer que conheci uma professora extremamente má.

Para que se possa aquilatar o quanto, certo dia ela me advertiu que eu estava com o cabelo comprido demais, e que deveria me apresentar à aula no dia seguinte de cabelo cortado. Não sei exatamente por qual razão, mas tive medo de comunicar a minha mãe o ocorrido, e então no momento em que eu estava saindo para a aula, na garagem de casa, com a tesoura sem ponta do penal que integrava meu material escolar, tirei uma bela quantia da minha franja.

Ao chegar à escola, parece que minha solução não agradou a simpática professora, e ela resolveu colocar-me sentado perante toda a turma enquanto cortava meu cabelo.

No dia seguinte eu ouvia rugidos no corredor que pareciam de uma onça extremamente nervosa, e quando prestei mais atenção, reconheci a voz da minha mãe que dedicava elogios preciosos à conduta da cabeleireira da escola.

Outra lembrança que me vem com muita clareza, é que havia um berço em minha casa, e eu não entendia qual a razão. Quando veio a notícia, minha mãe saia com um barrigão enorme pela porta da cozinha.

Fui então levado ao hospital para conhecer minha irmã Sibele, que tinha cara de joelho é lógico, e recebi como presente um carrinho machbox. Para que o mosquiteiro do berço parasse de aparecer danificado, fui eleito o guardião do berço. Na realidade colocaram-me para cuidar para que eu não estragasse mais o berço. Acredite se quiser, mas deu certo.

Quando chega minha irmã em casa, ao colo de minha mãe, percebi que havia perdido a majestade.

Lembro-me que mais ou menos nessa época, pedi à professora que me deixasse ir ao banheiro em meio à aula. Como se tratava daquela cabeleireira, recebi um não que escorreu em minhas pernas logo depois, ouvindo dos coleguinhas o famoso “fez xixi na calça”.

E levando nas costas então o vexame durante algum tempo, acabei descobrindo que minha compleição física permitia a mim argumentar com os amiguinhos, e nas brincadeiras do tipo “cavalo de guerra”, os hematomas apareciam nos adversários de forma a remediar minhas vergonhas. Isso aconteceu até o dia em que a mãe de um coleguinha veio com o menino até a casa de minha mãe. Sujou para o meu lado, pois eu preferia vinte coleguinhas rindo a uma mãe gritando.

Como não podia ser diferente, reprovei aquele ano. Tive vergonha apesar de não entender exatamente o significado daquilo. Apenas me sentia menos inteligente do que os demais. De certa forma, enquanto a professora cabeleireira dava aula, eu liberava minha imaginação e acabava viajando no meio daquele quadro negro. Eu nem entendia por que chamava o quadro verde de negro. Acho que essa minha falta de capacidade de compreensão justifica a minha reprovação.


Reprovado, passei as férias com minhas vergonhas, e no primeiro dia de aula, percebo que a mesma professora na frente da turma. Cheguei a pensar que seria mais um ano cortando o cabelo de graça, mas na realidade, o inacreditável estava para acontecer. Na realidade tratava-se da irmã gêmea da outra professora, e a única diferença é que esta, deste ano tinha um pequeno problema na perna, e mancava.

Com o passar do ano, descobri outras diferenças. Tratava-se de uma pessoa muito mais preparada para o magistério, e por vezes dedicava-me uma atenção especial. Guardo-a em boa imagem, e desenvolvi certo carinho pela professora.

Também recordo ter feito amizade com um rapaz deficiente visual. Era meu melhor amigo, e dentre tudo o que fazíamos, gostávamos de colecionar figurinhas de animais. Trocávamos as figurinhas na escola, e ao chegar em casa, fazíamos a cola de Maisena.