quarta-feira, 21 de maio de 2008

O PRIMEIRO CARRO A GENTE NUNCA ESQUECE (Samuel Rangel)


Eu, que não costumo me dar muito bem com a aquisição de veículos automotores, conversando com o Adriano do Ice Beer Hot Bar, fui tomado pela seção nostalgia. E na seção nostalgia, tenho a incrível capacidade de me transportar no tempo. Lembrei do tênis “Bamba” de sola de plástico que me fazia escorregar como se fossem patins na cancha poliesportiva da Praça Oswaldo Cruz. Lembrei-me dos sarais no salão de madeira azul aos domingos no Clube 3 Marias, reduto de minhas primeiras paixões de adolescência. E fui lembrando, fui lembrando, até chegar aos meus dezoito anos.

Lembrei-me então da história do meu primeiro carro.

Como já era músico gozando de certo conceito na noite curitibana, fui convidado a tocar em um bar que estava sendo aberto em plena Santa Felicidade, justamente a frente do Restaurante Veneza.

Fui aconselhado por Ivo Rodrigues a cobrar bem o cachê, pois tinha que manter um preço justo de mercado, sob pena de desempregar algum bom músico, ou mesmo colocar-me em situação de desvalorizar meu próprio trabalho.

Chegando no bar, adotei o preço sugerido por Ivo como um preço justo para desempenho em Voz e Violão. O Dono do bar me informou que não podia pagar aquele valor, e eu, ouvindo ecos da voz de Ivo, virei as costas e me retirei do ambiente de forma educada mas decidida.

Após uma semana, o telefone de casa toca, e o dono do bar quer conversar. Retornei, já tentando contabilizar o bom cachê como forma de comprar aquela calça Pierre Balman e um tênis Adidas.

Quando cheguei lá, descendo do ônibus, o dono do bar já foi logo disparando uma contra proposta. Lembrei-me de Ivo e disse que não aceitaria outra proposta. Então o dono do bar me leva até o fundo do bar, abre a garagem, e mostra um Dodge Charger RT dourado. Sim, era um carro com motor 8 cilindros, câmbio em cima, e dourado nas partes onde a ferrugem foi derrotada. Onde a ferrugem ganhou, o dojão era cor de vão de cerca mesmo.

Então o dono do bar, vendo meus olhos brilharem com a oportunidade de abandonar o transporte coletivo, e parar de dividir a brasília em dois casais no Verde Batel, fez a proposta de tocar no bar de terça a domingo, durante 3 meses, e o carrão seria todo meu.

Como era de se esperar, aceitei o negócio na hora, e como parte do acordo o dono do bar assinou o documento do carro, reconheceu firma e me passou, condicionando a retirada do carro do páteo após a metade do contrato. Aceitei, até porque não teria dinheiro para colocar gasolina na banheira, pois na época, o carro da moda era o Fiat 147.

Toquei com incrível afinco durante aqueles 45 dias, e por sorte, surgiram alguns casamentos para cantar na igreja Pio X, permitindo assim uma economia de dois ou três tanques para a banheira.

No dia combinado, chego ao bar e sou recebido pelo simpático dono com a chave na mão. Antes de tocar, liguei o carro curtindo o som do motor V8, e fui até o posto. Com a arrogância de um garoto que come caviar pela primeira vez, encostei no posto e mandei encher o tanque.
Voltei ao bar e comecei a cantar com enorme orgulho. Surgiu uma menina com belos olhos admirando meu trabalho, e pela primeira vez eu via a possibilidade de sair com uma menina em meu próprio carro. Em meus intervalos, sentei com a menina que mandava muito bem na cerveja. Eu a acompanhei, mas não tinha muito preparo hepático na época, pelo que, ao final da noite, quando a menina me convida para ir embora, percebo que estou sem condições de dirigir. Ela sorridente me oferece uma carona, e justamente em um Fiat 147 Rally.

E por ironia do destino, na minha primeira noite de carro, eu estava de carona com uma mulher. Mas tive juízo e aceitei a situação naquela sexta-feira.

No sábado, pouco antes do almoço, resolvi ir buscar o V8.

Desci do ônibus como se desse adeus ao motorista que nunca mais veria, ao cobrador deselegante, e aos companheiros de calvário coletivo.

Caminhei pelas britas do estacionamento do bar curtindo o som dos meus passos em direção ao meu primeiro carro. Minha vida finalmente havia mudado.

Liguei o carro com orgulho, acelerando de forma a mostrar que o tanque estava cheio, e arranquei com aquela barca pela Manoel Ribas. Lembrei-me então que era uma bela oportunidade de passar em frente a casa das ex-namoradas. Quando comecei a desfilar pelos bairros, lembrei que era melhor ainda visitar aquelas meninas que não quiseram namorar comigo.

Cheguei a casa de uma menina, cujo nome deixo no anonimato, e qual não foi a surpresa dela de ver-me motorizado.

Então ela perguntou se poderia ir comigo a noite no bar, e lógico que respondi que sim, já pensando em um Verde Batel depois do bar. Com a agenda combinada e a noite prometendo, sai da casa da menina, e resolvi ir mostrar o veículo ao meu grande amigo Guto, mas não sem antes desfilar pela Av. Batel e estacionar por cerca de duas horas no Parque Barigui.

O interessante quando a gente tem o primeiro carro, é que quer mostrar para os outros mas não quer parar de dirigir. Entra no bar com vontade de sair, só para dirigir uma pouco mais.

Após o Barigui, fui até Campo Comprido para mostrar o Dojão para o Guto.

Quando encosto na frente da casa de Guto, e começo a acelerar a barcaça, vejo ele sair correndo acenando os braços e gritando para que eu desligasse o veículo. Quando desliguei, percebi que um calor enorme vinha dos meus pés, mesmo com o motor desligado.

Quando vejo guto correndo com um balde d'água, sai do carro rapidamente e pude ver as primeiras labaredas saindo pelas bordas do capô e pelos cantos dos para-lamas. Fiquei atônito. Guto mandou que eu abrisse o capô. Quando abri o capô percebi uma labareda subir como de uma fornalha, enquanto Guto despejava inutilmente o balde d'água sobre o motor.

E não teve jeito. Eu tinha metade de um Dojão pegando fogo. Vizinhos apareceram de todo lugar com extintores e conseguiram apagar o fogo antes que ele invadisse o interior do carro.

Sentado no meio-fio, vi ali meu meio primeiro carro, e quando a voz retornou, preguntei ao Guto se daria para arrumar os estragos do fogo. Guto disse que sim, mas eu teria que tocar um ano para conseguir o dinheiro.

Contabilizei o prejuízo e a perspectiva de lucro, percebi que não vali a pena.

Então liguei para o dono do bar e informei o ocorrido.

Ele aceitou um acordo. Ele receberia de volta o Dojão, e me dispensaria do restante do contrato. Então aceitei o acordo, após ele combinar que eu tocaria só mais dois dias para pagar o guincho para levar o carro novamente ao bar.

A menina que iria sair comigo me ligou a noite, mas pedi a minha mãe que dissesse que eu não estava, e não sabia a hora que eu ia voltar. Se ela insistisse, pedi que minha mãe dissesse que eu não morava mais lá.

Peguei o ônibus e cumprimentei novamente o motorista, o cobrador e meus companheiros de linha Santa Felicidade, sabendo que desta vez, eu só embarcaria mais duas vezes naquele ônibus.

O FILHO, O PAI E OS DOIS COBERTORES (Samuel Rangel)

Como não é difícil de acontecer, ele também separou-se de sua esposa por problemas de relacionamento. Aquilo que antigamente chamavam de incompatibilidade de gênios, mas hoje alguns chegariam a chamar de psicose matrimonial bipolar. Psicose em virtude de que, quando brigam, nem ele nem ela conseguiam enxergar um palmo além do nariz. Matrimonial, pois antes do casamento, eles faziam sexo 3 vezes por semana falhando em média a cada três meses, e depois que casaram, fazem sexo a cada três meses depois da terceira falha. E bipolar em virtude de que não existe briga de casal em que exista um só culpado.

Mas após o divórcio, depois de alguns meses de ferpas trocadas com a ex-mulher, ele conseguiu levar o filho para dormir em sua casa pela primeira vez. Feliz, foi ele buscar o picorruxo na casa da mãe, embarcou-o na cadeirinha, e foi feliz da vida para sua casa, não sem antes desfilar orgulhoso o seu pequeno herdeiro no Parque Barigui. Depois de babar sobre o menino até quase mata-lo afogado, foi convidado a jantar na casa de amigos. Lá chegando, serviu ao menino um macarrão delicioso acompanhado de um suco de uva.

Consciente de sua tarefa de pai, na hora certinha, pouco depois das nove da noite, embarcou novamente no seu carro e resolveu ir para a sua casa.

Banho no menino de dois anos e meio em plena banheira de hidromassagem, que o moleque adorou aliás (parecia uma piscina), mamadeira com todinho, pijaminha de pelúcia e cama. Para curtir mais aquele momento, o pai colocou o menino para dormir em sua própria cama. Ao ver aquele menino começando a fechar os olhinhos cansados, enquanto ouvia a história mais esdrúxula que o pai conseguiu inventar na hora, o silêncio tomou conta do ambiente. Então os olhos do pai ficaram deitados sobre a face de seu filho, como se fossem admiradores incondicionais da divina arte da vida.

Enquanto olha a criança, lembranças se alternam em alegria e tristeza colocando-o a meditar sobre o casamento, as brigas e a separação ao final do relacionamento. Mas entre lágrimas e sorrisos, o pai então percebe que se casar foi um erro, aquele filho, mostra que daquele erro surgiu um maravilhoso milagre, um maravilhoso acerto, uma benção para toda a vida.

Curvado sobre a criança durante horas, quando já passa da meia noite, o pai retira-se de seu próprio quarto para ajeitar a cozinha, após o que, vai até a sala para assistir um pouco de televisão antes de juntar-se ao seu filho em sono.

Perto da uma hora da madrugada, um choro vem do quarto, fazendo com que o pai levante-se com a agilidade de um esportista, transponha as barreiras da sala como um saltador, dobre a esquina do corredor como um piloto de Fórmula 1 e entre no quarto com os olhos assustados. Quando olha a cena, vê o molequinho sentado na cama chorando, e sobre o cobertor, uma quantidade enorme de macarrão e suco de uva.

O pai, sentido pelo choro do menino, consola-o, retira o cobertor decorado como um jogo americano de mesa, troca o pijama e o coloca para dormir novamente após algum tempo. Ao ver que o menino se acalmou, o pai retira o cobertor do quarto e vai até a lavanderia. Lá chegando, tem a atitude normal de colocar o cobertor de molho no tanque. Quando já saia da lavanderia, olhou para trás, e como se alguém lhe tivesse dito algo, volta, passa uma água no cobertor ainda no tanque, leva à máquina de lavar.

Após o processo de lavagem, o pai então resolve colocar o cobertor na secadora, que por sorte é 220 volts. Após rodar na máquina por cerca de uma hora, o cobertor é retirado, e a felicidade do pai é enorme, pois o mesmo está seco e quentinho.

Quando coloca o pé para fora da lavanderia, ouve novamente o choro do filho. Sem a energia da primeira corrida, ele corre até o quarto, quando vê a cena repetir-se em frente aos seus olhos. O moleque sentado na cama, o cobertor jogo americano, o macarrão e o suco de uva. Naquela hora, o pai percebe que aquele cobertor quentinho em suas mãos, é de grande serventia. Acalma o menino, coloca nele um moletom, pois pijama não tem mais, e faz com que o menino se deite.

Pensando de onde teria vindo tanto macarrão, o pai resolve repetir a operação. Passa uma água no tanque, coloca na máquina, e agora lembra de estender algumas toalhas sobre a cama. Volta à lavanderia, coloca o cobertor na secadora, e após o tempo de secagem, retira o cobertor seco e quentinho e vai até o quarto.

Seus ouvidos crescem para tentar perceber se algum choro vem do quarto. Não. O silêncio impera. O pai entra no quarto e olha novamente para a criança dormindo como um anjinho de moletom.

Então ele se deita, e quando os olhos estão quase fechando, um som característico de mais macarrão voador sobre o cobertor é ouvido, mas dessas vez não poupa o pai. O pai agora fazia parte do jogo americano. A criança chora, o pai consola, e aquele cobertor quentinho novamente está a serviço do acaso, pois o menino mostra ter boa mira. Acertou exatamente onde não estava a toalha.

Então o pai coloca novamente a criança para dormir com o carinho prórpio da paternidade, e volta a lavanderia para repetir o procedimento, apesar de não acreditar que o menino teria mais macarrão para dispensar. Se isso acontecesse, ele começaria achar que era pai de uma família italiana inteira.

Após os quarenta minutos de procedimentos, lá está o pai novamente entrando no quarto. Desta vez o pai olha para o filho com um certo medo. Será que vem mais macarrão por aí?
Quando o pai percebe, são quase seis horas da manhã. Ele não agüenta e sucumbe ao lado da criança. O pai finalmente dorme.

Com a velocidade de um flash, os seus olhos se abrem assustados, após sonhar com um inferno de macarrão. Ao acordar, vê os olhos gigantes de seu filho a pouco menos de dez centímetros de seu rosto. Ainda com medo do milagre da multiplicação do macarrão, tenta compreender o que o seu filho está falando.

Pai! Pai! Pai!

O filho repete insistentemente com o pequeno dedinho cutucando o rosto do pai.

O pai pede para que o filho o deixe dormir mais um pouco. É justo que o pai descanse um pouco mais. A noite não foi nada fácil, mas a resposta vem:

- Pai. Você tem que acordar. Você é o pai!

Então ele abre os olhos, e vê seu filho renovado, com toda a energia do mundo, sorridente, e sem nenhum macarrão sobre as cobertas.

Ser pai é assim mesmo, mas máquina de lavar e secar, são imprescindíveis para os pais divorciados. Alguns cobertores extras também ajudam bastante.