Passos rápidos pela calçada quebrada levam o homem em seu protesto silencioso. A roupa de pouco glamour o identifica como um entre milhões, daqueles que não conseguem encontrar tempo para ler um jornal. Nas costas uma pequena mochila revela que ele vai para uma espécie de viagem. Não uma viagem de turismo, mas uma ausência de um dia inteiro no trabalho. Tênis simples comprado em uma estante de algum mercado popular, moletom de promoção e jaqueta chinesa, são adereços inglórios de quem não tem tempo para vestir qualquer luxo.
Sua primeira parada é no ponto de ônibus. Uma parada longa que refaz o fôlego perdido. No ponto durante toda a espera, nenhum discurso. Fragmentos de palavra quebram um silêncio maior que afronta a madrugada, temperado pelo ruído que não se pode entender dos fones de ouvido de alguns estudantes. A métrica entre os ruídos denuncia que o que eles ouvem é música.
Lotado o ônibus encosta barulhento e envolto no cheiro de diesel. As rodas espirram o barro que suja os sapatos afoitos pelo embarque, mas ninguém reclama, pois o simples fato de poder ir, já é uma glória.
Segurando-se pelas ferragens frias do ônibus alguns dormem em pé, outros sentados fitam a amargura no olhar do homem de mochila. Comentários que não se podem ouvir por inteiro não se permitem entender. E o homem prossegue em seu silêncio.
Ele desembarca em uma das praças do centro da cidade, exatamente quando o sol mostra seu primeiro fio de ouro. Nenhum silêncio, mas ninguém fala algo que se pudesse esperar. Nova espera na calçada arrumada, em meio a canteiros requebrados pelos esbarrões da pressa. Todos parecem ter muita pressa.
Outro ônibus mesma história, mesmo silêncio. Dessa vez ele desembarca nos portões da fábrica que já soa a sirene como convite. As pernas se agitam em conduzir o homem para seu trabalho. Pelas catracas ele passa com destreza, e enquanto sua imagem se perde no terreno que separa a fábrica das telas que a cercam, ele olho sorrindo para a portaria. Seus olhos vibram com a entrada, mas antes que sua comemoração continue, ele se sente observado, e contem o sorriso que deixou escapar, voltando a cabeça e os olhos para a porta do galpão que irá devorar seu dia.
Uma passeata de um homem só.
Durante o seu caminho, protestava em silêncio contra os imorais do Congresso. Em silêncio, manifestava seu descontentamento contra o descaso da justiça para o justo. Sem qualquer palavra, ele se insurgia contra a falta de segurança pública que ceifa cabeças jovens enquanto a justiça é cega.
Esse povo brasileiro protesta assim. Em milhões de passeatas de um homem só.
Eles não se reúnem pela revolta, pela desgraça, ou pelo interesse público. Ter com os outros brasileiros, é exclusividade do futebol, do carnaval, das festas em geral. Para essas coisas da política, que cada um faça sua parte parece ser a regra.
Mas o que fariam esses brasileiros se eles tivessem tempo de ler um jornal?
Saberiam que enquanto seu holerite é um fôlego que chega ao final do mês, imorais de terno e gravata, de fala mansa e rebuscada, falam de bilhões de reais com uma naturalidade inacreditável.
E se esgrimam em acusações, confessando que todo telhado é de vidro, revelando que esses milhões sumiram em portarias secretas, atos clandestinos, acertos ocultos, e todas as outras formas criativas que os corruptos encontraram para saquear as riquezas deste país.
Neste país, onde um imbecil imoral, numa espécie de versão maligna de um filme de Jeca Tatu, resolve construir um castelo e denunciar ele mesmo sua intenção de fazer voltar a idade das trevas, dos senhores feudais.
A isto, surge a reação vassala de uma horda de vagabundos, que num jogo de xadrez macabro, absolvem sua excrescência na reunião da corte de um suposto “Conselho de Ética”.
Conselho de Ética composto por políticos?
Como se isso fosse possível entre políticos.
Se encontrar um político com alguma ética seria uma alegria, o que se haveria de dizer se encontrássemos material humano para formar um conselho?
Enquanto isso cada brasileiro segue sua passeata de um homem só, protestando com seu trabalho durante oito meses por ano.
Sim. Apenas oito meses, pois quatro meses por ano, esses brasileiros trabalham para manter essa horda, para que se construam castelos, para que alguma estatal invista “meios milhões” de Reais em alguma sacanagem como a Fundação José Sarney.