sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

ITALO BOVO, FERNANDO SABINO E SEU DOMINGOS (Samuel Rangel)

Eu, que ainda não sabia para que existia uma gilete, odiava muito as aulas de português. Principalmente aquelas ministradas pela professora obesa com malhas de tigresa. A maquilagem exagerada e a calça que não lhe caía bem tornavam aquela imagem nada agradável, e as aulas de português pareciam uma versão inútil do Latim.

Certo dia, enquanto os meus olhos passeavam pelo pátio do colégio Rio Branco, uma outra professora trouxe alguns livros para a sala de aula com a intenção de nos ensinar o que eram crônicas.

Livros para lá e para cá, veio milagrosamente às minhas mãos um livro de Fernando Sabino, cujo Título não tive o bom senso de guardar diante de minha tolice juvenil.

Mas a história, que falava de um bar e de um jogo entre Atlético Mineiro e Cruzeiro, abriu-me os olhos de forma definitiva. Finalmente eu entendia todo o valor da palavra escrita.

Passados trinta anos do meu primeiro encontro com uma crônica, onde tive o prazer de conhecer o bordado de palavras coloridas de Fernando Sabino, Ítalo Bovo nos deixa órfãos de sua valiosa presença. Tentei escrever algo, que até se pode ler logo abaixo deste texto, mas embora esteja aí, não considero esse texto capaz de expressar o que sinto nesse momento.

Chego a pensar que deveria ter silenciado os meus dedos.

Então resolvi procurar conselhos, e o primeiro nome que me surge à cabeça, é o de Fernando Sabino. Fui pesquisar suas crônicas, pois percebo que estou precisando muito estudar antes de escrever novamente.

E em homenagem aos leitores, comecei a buscar inspiração no mestre Fernando Sabino, ainda que nunca lhe tenha faltado o juízo de me admitir como aprendiz.

E numa daquelas artes do destino, encontrei o seguinte texto que passo a oferecer a Ítalo Bovo, seu filho, seu neto e todos os demais seres humanos que tenham a benção de conhecer a paternidade.

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COMO DIZIA MEU PAI (Fernando Sabino)


JÁ SE TORNOU HÁBITO MEU, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução:

— Como dizia meu pai...

Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião.

De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, meidentificando com a herança espiritual que dele recebi.
Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma idéia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim.
— No fim tudo dá certo...

Ainda ontem eu tranqüilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso:
— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim.

Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a subir pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da tarde, egresso do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com minha mãe no sofá de palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do dia. Os filhos guardavam zelosa distância, até que ela ia aos seus afazeres e ele se punha à disposição de cada um, para ouvir nossos problemas e ajudar a resolvê-los. Finda a última audiência, passava a mão no chapéu e na bengala e saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo. Regressava religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia sempre de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de balas que o paizinho nunca deixava de trazer.

Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma bóia de descarga, a bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da necessária habilidade e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém mais podia tocar. Aprendi com ele como é indispensável, para a boa ordem da casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma chave de fenda. Durante algum tempo andou às voltas com o velho relógio de parede que fora de seu pai, hoje me pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois de remexer durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao remontá-lo houvesse sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O relógio passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas desencontradas. Como, aliás, acontece até hoje.
Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum aborrecimento.
— As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem.

Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloqüente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs:

— O que não tem solução, solucionado está.

E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar isso, como seu filho Gerson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si.

Às vezes seus princípios pareciam confundir-se com os da própria sabedoria mineira: esperar pela cor da fumaça, não dar passo maior do que as pernas, dormir no chão para não cair da cama. Os dele eram mais singelos:

— Mais vale um apertinho agora que um apertão o resto da vida.

— Negócio demorado acaba não saindo.

— Dinheiro bom em coisa boa.

— Antes de entrar, veja por onde vai sair.

Um dia me disse, ao me surpreender tentando armar um brinquedo qualquer com mãos desajeitadas:

— Meu filho, tudo que é bem feito se faz com os dedos, não com as mãos.

Tenho tido ocasião ao longo da vida de observar como é procedente este seu ensinamento. A mão é grossa, pesada, insensível. Se não fossem os dedos de nada serviria, a não ser para dar bofetadas. Os dedos são refinados, sensitivos, e a eles devemos tudo o que é bem feito e acabado: do mais requintado trabalho manual às mais complicadas operações, da mais fina sensação do tacto à mais terna das carícias.

— Se o cafezinho foi bom, melhor não aceitar o segundo: será sempre pior que o primeiro.
Como tudo mais nessa vida: uma viagem, uma mulher: não repetir, pois a emoção jamais será a mesma da primeira vez. E não desanimar, pois se nascemos nus e estamos vestidos, já estamos no lucro. Nada neste mundo é cem por cento perfeito. Se contamos com mais de cinqüenta por cento, também já estamos no lucro. Quando conseguimos o que é apenas bom, naturalmente devemos continuar aspirando o melhor, se possível - mas perfeição absoluta, só Deus. E creio que Seu Domingos, homem íntegro, reto e temente a Deus, hoje em Sua companhia, não consideraria sacrilégio comentar, naquele seu jeito ladino:

— E assim mesmo, olhe lá...

Seus conselhos eram de tamanha simplicidade que tinham a força de provérbios nascidos da voz do povo: nada como um dia depois do outro, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar, tudo tem seu tempo. Fosse ele influenciado por leituras piedosas, poderíamos mesmo detectar, aqui e ali, vestígios de inspiração bíblica: tempo de semear, tempo de colher...
— É o que nos acontece.

Há uma diferença sutil entre admitir que as coisas são como são, não como deviam ser, e reconhecer que é o que nos acontece. Aqui, o comentário não pretendia refletir a impossibilidade de modelar (com os dedos) os fatos de acordo com a nossa vontade, mesmo que esta esteja certa. Exprime antes a humilde aceitação da nossa precária condição humana, como frágeis criaturas de Deus. Procura se solidarizar com a desgraça alheia, como a dizer que também estamos sujeitos a ela, somos todos irmãos na mesma atribulação. É o que nos acontece.

Portanto, alegremo-nos! Uma amiga minha, que não o conheceu, busca nele se inspirar quando afirma, sempre que se vê diante de algum contratempo:

— Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar o meu bom humor.
Acabei levando esta disposição de minha amiga às últimas conseqüências: o mais importante é não perder a capacidade de rir de mim mesmo. Como Cartola e Carlos Cachaça naquele samba, às vezes dou gargalhadas pensando no meu passado.. . E cada vez acredito mais no ensinamento recebido não sei se de meu pai ou diretamente de Confúcio, segundo o qual há várias maneiras de realizar um desejo, sendo uma delas renunciar a ele. Como adverte outro sábio, se desejamos obstinadamente alguma coisa, é melhor tomar cuidado, porque pode nos suceder a infelicidade de consegui-la.

Tudo isso que de uns tempos para cá vem me vem ocorrendo, às vezes inconscientemente, como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias, quando eu ia caminhando distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que propósito, uma frase ouvida desde a infância e que fazia parte de sua filosofia: não se deve aumentar a aflição dos aflitos. Esta máxima me conduziu a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no filme que fiz sobre ele, a qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir das pessoas mais do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão absoluta que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor. No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de sol, cheguei a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la enviado: Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do outro.

Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência adquirida ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de representante de umas firmas inglesas, era procurador de partes — solene designação para uma atividade que hoje talvez fosse referida como a de um despachante. A princípio os amigos, conhecidos, e depois até desconhecidos passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou receber dele uma orientação. Era de se ver a romaria no seu escritório todas as manhãs: um funcionário que dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai agoniado com problemas do filho — era gente assim que vinha buscar com ele alívio para a sua dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o conhecia pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de ter saído de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra sua que hoje tanta falta me faz.

Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas más. No momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom.
O texto acima foi publicado originalmente no livro " A Volta por Cima " e extraído de " Fernando Sabino - Obra Reunida, Vol. III ", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1996, pág.611.

SÉTIMO DIA (Samuel Rangel)

Uma homenagem a Ítalo Bovo

No primeiro dia, um silêncio consternado instalou-se em minha cabeça, minha boca, e minha mão. Não sabia o que dizer, e por respeito não escrevi. Quando o segundo dia veio, ainda não tinha respostas para as perguntas que nem saberia fazer.

Chegou o terceiro dia, e enquanto sentava com um amigo à beira de um tanque de Tilápias, percebi que a vida tem seu curso entre as margens de nossos limites. Não somos nós que decidimos o momento em que a vida aflora das profundezas, e nem mesmo teremos a sorte de decidir quando e como chegaremos à foz deste rio.

No quarto dia, o Natal veio silencioso. Fiz-me presente onde não queria, e abracei pessoas que nem desejava. Tudo para ver uma tranqüilidade de pessoas que amo. Misteriosamente, ao abraçar pessoas que fizeram acumular decepções neste rosto cansado, senti-me maior, melhor, mais forte. Senti-me então superior.

No quinto dia, o silêncio era menor, e ousei alguns sorrisos.

No sexto dia, o filho me convida a uma conversa, e a esta jamais me furtaria o dever. Então sentados em nosso bar e testemunha de nossas filosofias, fomos discutir a perda. O significado de perder tem por sua própria natureza, uma abençoada origem. A perda só assola aquele que um dia teve.

Esta é uma das tantas lições deixadas por Ítalo Bovo, um pai atencioso e sábio de Rio Claro, que deu-me gratuitamente um amigo, um parceiro de violão e um companheiro de boemia. Devo a Ítalo Bovo a minha amizade com Ítalo Bovo Junior.

Ao ouvir um dos CDs que gravamos, lá estará a voz do meu “comparsa” (como ele mesmo me chama).

Seu pai nos deixou na sexta-feira passada, precocemente, sem aviso, sem alarme, deixando-nos apenas com perguntas. Deixou-nos dormentes ao partir dormindo. E até isso acho que fez com intenção, pois somente procuramos respostas quando temos alguma pergunta que nos incomoda, a e ao procurar resposta, nos deparamos com pequenas verdades da vida, que ao tocarem nossa alma, nos tornam pessoas melhores, mais humanas.

Essas pequenas verdades constituem um verdadeiro mar de bons valores, como amizade, respeito, justiça, humildade e compaixão.

Então agradeço a Ítalo Bovo as lições que me foram entregues por intermédio de seu filho, dizendo-lhe desde já, que estarei atento a estas pequenas coisas muito valiosas.

E em face de tal presente, não poderia deixar de prestar uma homenagem.

Por considerar que a vida é um livro que nos foi dado em oportunidade para escrever ou mesmo rabiscar nossas linhas, assim considero em relação a todos. Um dia o livro de Ítalo Bovo foi aberto, e não mais se fechou. Antes do último capítulo, outro livro foi aberto, e depois deste ainda outro. Ítalo Bovo está perpetuado no semblante e nas atitudes de seu filho e seu neto, este dois livros abertos e nervosos nas linhas que estão sendo escritas.

Como última lição, aprendi que a morte não é o último capítulo de uma história. A morte carrega um conselho. Se gostou deste livro, leia aquele que está logo ali. É como se fosse uma indicação para aquilo que parece ser outro livro, mas na realidade, é a continuação da mesma história.

Por conhecer as páginas de Ítalo Bovo Junior, e do filho deste também, Ítalo bovo é um livro realmente aberto, que não se fechará jamais. Como o Rio, que embora pareça, não acaba ao tocar o mar. Ele apenas passa a fazer parte de algo infinitamente maior.

Que Deus Te Abençoe e obrigado pelas lições gratuitas.