Então, num sábado, Marcão aguarda atento o início do jogo do Atlético. Ele é daqueles fanáticos que coloca até a toca longa para assistir ao jogo em casa. E lá está o cidadão, roendo as unhas esperando o começo do jogo Grêmio e Atlético, que comprou na TV a cabo.
Quando falta pouco mais de quinze minutos para começar o jogo, sua mulher vem até ele, com o barrigão de nove meses, onde se encontra o sexto filho do casal. Então ela passa a ele uma listinha de mercado. Quando ele pergunta se pode ir depois do jogo, a mulher faz aquele beicinho de grávida e ameaça ter um chilique.
Ele então, cônscio de sua função de pai e de mantenedor da paz doméstica, pensa que não irá perder mais que dez minutos de jogo se for no mercado, pois não é a mais que três quadras de seu apartamento. E sai correndo para realizar as compras da patroa.
No corredor do décimo andar, ao chegar ao elevador, percebeu que a sorte não estava do seu lado. O elevador estava no nono andar, mas estava descendo. Foi parando de andar em andar, até chegar ao térreo. Na volta, veio repetindo a escala. Andar por andar. Quando abre a porta, Marcão está pronto para meter a mão em algum moleque brincalhão, mas para sua tristeza, é um cidadão de dois metros de altura com um macacão cinza, fazendo a manutenção do elevador. Ele entra em silêncio, e vê o elevador subir até o décimo oitavo andar parando um por um. A cada vez que o elevador abria a porta, Marcão chacoalhava as pernas como se quisesse ir ao banheiro.
O técnico do elevador olhava aquilo com estranheza, mas não falava nada e continuava a apertar os botões, um a um. Quando chegou ao térreo com o terço rezado, Marcão saiu em disparada, mas antes que transpusesse a portaria, Vantuil, o porteiro gago lhe parou pelo braço.
Marcão disse que não podia esperar o desembuche das palavras, e saiu correndo. No mercado, encontrou uma enorme fila, mas manteve a sua postura de pai responsável. Fez as compras da lista, entrou na fila, e após uma espera de uma velinha que comprou uma batata, um saco plástico, uma cenoura, outro saco, um tomate, outro, uma banana, tendo frequentado todas a bancas do setor de verduras, frutas e afins, vê o leitor do código de barras do mercado falhar após uma queda súbita de energia. Então a caixa passa novamente todos os cento e dezessete saquinhos, um por um, digitando aqueles 23 números de cada código de barra. Marcão então pensa: Marquei de não trazer o rádio com os fones de ouvido.
Após uma correria enorme até seu prédio, chega e pergunta ao porteiro enquanto espera o elevador: O que você queria Vantuil?
As palavras chegam aos pedaços na boca de Vantuil, e Marcão não entende nada. Quando chega o elevador, Marcão desiste, mas antes que a porta se feche, ouve Vantuil alcançar êxito e dizer: - Sua mulher precisa também de um repolho, uma bolacha de chocolate e dois pacotes de Tang. Marcão não acredita, mas sobe tranquilamente imaginando que poderia colocar a culpa no porteiro gago.
Quando abre a porta, antes que possa falar qualquer coisa, a sua mulher lhe pergunta com a ansiedade de uma criança de 3 anos: - Trouxe minha bolacha, não trouxe? Eu estou morrendo de desejo!
Quando Marcão menciona o nome de Vantuil, a mulher desaba em choro, e começa a ter uma crise nervosa. Ela quer mudar de apartamento, quer matar o porteiro e continua querendo comer bolacha de chocolate com Tang. A criançada corre para a sala e começa a perguntar o que está acontecendo. Então Marcão vê na televisão que o jogo está no 44 minutos do primeiro tempo. Ele percebe que é melhor perder o intervalo, do que perder o segundo tempo. E lá vai ele, mas dessa vez com mais sorte.
O elevador está esperando Marcão, que entra correndo e vai direto para o térreo, sem parar em nenhum andar. Quando sai do elevador, da de cara com a assombração do porteiro, que lhe segura pelo braço e começa a gaguejar. Dessa vez não. Marcão, aprendeu com a lição anterior, e calmamente esperou ele conseguir falar. Desembucha Vantuil! Desembucha Vantuil! Até que, sua mulher quer uma bolacha de chocolate, um repolho de dois pacotes de Tang. Marcão irritado disse já saber disso, e então Vantuil apenas diz que para um porteiro competente é melhor passar um recado duas vezes que esquecer dele. Essa frase ele tinha decorada. Quase como uma canção.
E lá vai Marcão, lamentando profundamente o tempo que perdeu com o porteiro. Ao chegar no mercado, encontra o mercado vazio, sem fila algum nos caixas. Cruzando os corredores do mercado como um entregador de jornais, sem parar nenhuma vez, consegue realizar a compras em não mais que 30 segundos. Chega ao caixa com ares de campeão, e olha para todos com orgulho, como se dissesse a si próprio o quanto havia sido rápido. Até o valor da conta conspirava a seu favor. R$ 5,00 exatos.
E lá vai Marcão correndo reto até seu apartamento com a sacolinha na mão. Quando chega em casa entrega a sacola para a sua esposa e corre para a frente da televisão, mas antes de ver o jogo começar, ouve sua esposa dizer: Eu não acredito! Você esqueceu a bolacha e o Tang? Sabe o que eu quero que você faça com esse repolho? O Juiz apita, e Marcão segue reto para o elevador, passa pela portaria, cruza a primeira quadra, a segunda, chega na terceira, passa de lado pela porta automática do mercado, faz um curva brusca para a direita e segue furioso para o caixa 17. Lá chegando dispara: Eu comprei a bolacha e o Tang e ao chegar em casa, só tinha um repolho. A senhora lembra-se de mim?
A caixa disse que sim, mas informou que havia embalado a bolacha e o Tang em outra sacola. Ao ser indagada sobre a restituição da sacola faltante, a caixa diz não ser possível. Marcão tem um surto dentro do mercado, e como todo bom brasileiro, sabendo dos seus direitos, chama o gerente. O gerente lhe informa que não será possível reaver a sacola, pois depois que o produto passa pelo caixa, a responsabilidade é do cliente. Após uma discussão de cerca de 10 minutos, Marcão percebe que não terá outro jeito, e lembra-se do jogo que está perdendo. Então rapidamente, corre para o corredor da bolacha, depois do Tang, e volta para o Caixa. Na sua frente um cidadão passando o cartão de crédito, e nada de linha.
Vai ao outro caixa, e encontra a placa de fechado. A um terceiro, mas três carrinhos cheios de quinquilharias anunciam a má sorte. Vai ao terceiro, quarto, até que, encontra um caixa rápido. Quando passa os produtos, vem o valor da conta R$ 5,00. Então ele coloca a mão nos bolsos, e para a sua surpresa, não há nada. Então ele lembra-se de uma nota de cem que carrega na carteira. Sempre acreditou que aquela garopa lhe daria sorte algum dia. E lá está a nota de cem.
Entrega-a a caixa que imediatamente pergunta. O senhor não tem mais trocado? Ao mesmo tempo a luz do caixa se acende. Ninguém aparece, até que chega uma boa alma. Lá está Marcão chacoalhando as pernas, ao que a caixa responde apenas com o dedo indicador em direção ao banheiro.
E nada do troco. Marcão continua desfilando palavrões e reclamando do mal atendimento, mas quanto mais reclama, menos preça tem a caixa. Passa-se um tempão até que vem o troco, sendo boa parte em moedas. Então Marcão sai correndo para a casa, com a sonoplastia de um cofrinho de criança.
Quando entra no apartamento entrega a sacola à sua Mulher e corre para a televisão.
Ao olhar, o placar é de três a zero para o Grêmio. Marcão sente a fúria lhe subir pelas pernas.
Então sua mulher entra na sala: Eu não acredito que você perdeu as compras. Você perdeu a bolacha?
Marcão muito consciente já diz logo: - Não senhora. Está aí na sacola! Eu não perdi nada!
Diz a mulher - Eu sei que a bolacha está na sacola.
Marcão, então irritado, esquecendo-se da gravidez da mulher, dispara: Então! Não está aí? Por que que você vem me irritar com esta história de que eu perdi a bolacha? Eu não perdi nada! E chega! Deixa eu ver ao menos o final do jogo em paz.
Então a mulher arremata: Não perdeu? Tem certeza que não perdeu? E o que está fazendo esse outro repolho aqui?
Marcão, vendo-se encurralado, percebendo que tinha repetido a compra, diz logo: Eles devem ter mandado por engano.
As crianças olham aquilo com atenção, até que a mulher diz: Então está bem querido. Já que eles mandaram por engano, eu quero que você vá lá no mercado devolver este repolho.
Marcão levanta-se aos berros: O que? Devolver? Você está brincando?
A mulher responde: Não senhor! Você não vai dar mal exemplo para as crianças. Pode ir lá devolver. A César o que é de César.
O juiz apita o final do jogo, e Marcão pega o repolho irritado. Enquanto o elevador desce, Marcão relembra todos os passos da correria, e sente uma revolta que cresce na medida que o elevador desce. Quando chega ao térreo, Vantuil gentilmente abre a porta. Então Marcão tem a vontade de meter o repolho na cara de Vantuil, mas o pouco juízo que ainda lhe resta, diz que o pobre porteiro gago não tem culpa.
Marcão sai pela portaria e olha insistentemente o repolho, quando percebe que, além de ter perdido dinheiro no mercado, ainda terá que devolver um repolho pelo qual pagou.
Então a sua resposta vem de pronto. Vou tacar essa merda é na rua!
Antes que o cérebro coordene seus braços, eles já estão girando como num lançamento de disco olímpico. Duas voltinhas e o repolho sai da mão de Marcão em alta velocidade, quica uma vez na calçada, e vai em direção a rua.
Como se em câmera lenta, Marcão percebe com sua visão periférica que um automóvel se aproxima. Ele é branco. Mas espere, também é cinza e amarelo. E está entrando no seu campo de visão. Tal qual no programa do Silvio Santos quando abre lentamente aqueles envelopes, a Parati vai aparecendo, aparecendo, aparecendo, enquanto Marcão reza o Pai Nosso mais rápido que alguém já rezou. Mas perto do amém, a imagem que lhe aparece é nítida e terrível. O repolho vai direto contra a porta do carro da PM.
O carro para, e Marcão embarcou por trás, e sem pompas.
Não vou dizer nomes, mas dizem que aconteceu, em parte ou no todo. O que eu posso dizer que é verdade, é que eu sei de alguém que comeu esse repolho.
quinta-feira, 3 de julho de 2008
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