quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

COMO PASSAR A VIRADA DO ANO DENTRO DE UMA BRASÍLIA


Dezembro, 31, e o Jornal Hoje estampa uma imagem inacreditável. Os paulistanos estão enfrentando uma fila monstruosa para descer para o litoral. Quando vi a imagem hoje pela manhã, no bom dia Brasil, imaginei que pudesse ser algum efeito residual da cerveja de ontem, pois eu não conseguia identificar no pedágio lotado qual o sentido da pista. Esfreguei os olhos e voltei a dormir. Mas no Jornal Hoje, pude perceber que realmente a coisa é séria. Segundo comentários, eles estão seguindo a um ritmo de dez quilômetros horários, o que então significa que, para um percurso de 120 km, eles terão que passar doze horas dentro do carro.
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Imaginei então a cena clássica da brasília azul calcinha, descendo para o litoral sob a cuidadosa condução de Sebastião. Sebastião é esposo de Edivancléia, filha de Dona Ilá. Dona Ilá é uma senhora de um metro e meio, e com cerca de noventa quilogramas (ela até lembra Dona Marisa, mas a brasília de Sebastião é outra). Como a vida não lhe permitiu acompanhar a moda, sinônimo de praia é aquela camiseta regata de viscose, branca já meio amarelada.
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Sebastião conseguiu colocar os quatro filhos na brasília, o que exige muita organização, disciplina e alguns cascudos também. No chiqueirinho da brasília vai o isopor com a tampa quebrada. Pelo buraco se pode ver um frango defumado, duas Cidras Pulmann, uma Coca-Cola e um Salpicão de Frango. Também vieram as laranjas (a criançada gosta de pois de sair da água). Os pacotes de batata palha estão no porta-luvas. As malas foram desfeitas e as roupas foram colocadas em plásticos azuis de sessenta litros sob o capo do pequeno porta-malas dianteiro da brasília, que tem motor traseiro.
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Welington, Washington, Wesley e Wildiney conseguiram fazer um acordo e levar uma única bola para jogar suas peladas na areia, pois só ficarão até domingo. Eles dividem o banco traseiro do bólido, enquanto Sebastião, Edivancléia e Dona Ilá, dividem o banco dianteiro. Não há problemas, pois o que sobra nas ancas de Dona Ilá, falta em Edivancléia que de tanto trabalhar em casa de família, não teve a sorte de acumular gorduras. E o espírito de Edivancléia ainda ajuda, pois vez por outra ela cochicha no ouvido de Sebastião alguma “besteirinha” acerca do freio de mão.
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Quando chegam no pedágio, já estão suados, e a verdade é que não adianta. Tem gente que vai passar o reveillon em plena estrada. Mas não tem problema. Foi um ano bom pois Sebastião conseguiu tirar o nome do Cerasa, e Edivancléia está feliz com as famílias que anda atendendo como diarista.
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As horas passam ao ritmo do motor da brasília azul, e quando eles percebem, estão cerca de trinta quilômetros da casa do tio do primo de um amigo, onde deveriam passar a festa. Mas não haverá tempo. Repentinamente uma agitação começa a tomar conta da estrada, e dessa vez não são tantas as pessoas reclamando do engarrafamento. Alguns olham para o relógio, e repentinamente alguém grita: falta uma hora!
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Sebastião sorridente já olha para Edivancléia e comunica que a ceia deverá ser por ali mesmo. Edivancléia que não perde o bom humor por nada, já manda os meninos abrirem o isopor. Quando passa o vendedor de milho verde, Sebastião consegue um bom punhado de guardanapos que deverá servir de prato. A Coca-cola litro as crianças dividem e tomam no bico mesmo. Mas a cidra não. Isso é coisa chique que a gente tem que tomar no copo. Logo consegue com o vendedor de Caldo de Cana três copos de plástico para fazer o brinde. O salpicão fica no painel da brasília, a batata palha fica no pacote mesmo, e o frango defumado vai direto para o guardanapo.
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E lá estão eles comendo a ceia de reveillon, felizes e cantando a clássica “Adeus Ano Velho”. O cidadão do carro da frente começa a tirar alguns fogos de artifício e dispará-los iluminando os olhos brilhantes das crianças da brasília.
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Já com a Coca-cola na metade, Edivancléia pede para que as crianças guardem o resto para o almoço do dia primeiro . Os ossos da cocha do frango voam pela janela e a ceia está acabada. Alguém grita que faltam só quinze minutos. Uma euforia toma alguns enquanto outros motoristas solitários olham para o relógio indignados. A cidra é aberta e a rolha atravessa a pista para sumir na vegetação. Enquanto Sebastião vira o primeiro copo da cidra Pulmann, uma moto da Polícia Rodoviária para ao lado da janela do motorista. O Policial Rodoviário pede para Sebastião descer e logo lhe pergunta: O senhor está bebendo e dirigindo?
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Sebastião não se contêm e uma gargalhada lhe escapa: Bebendo estou, mas dirigir eu não consigo há mais de dez horas. O Policial ri, e com o espírito de festa, resolve deixar a transgressão para lá. Quando acelera a moto, ouve alguém gritar: E o senhor que está ultrapassando em fila dupla? O policial percebe que está errado, pois as motos têm que respeitar as faixas que dividem a pista, mas irrita-se com aquilo e faz a volta.
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Quando pretende identificar o autor do insulto, alguém do outro lado grita: Olha o Policial andando na contra mão! Incrivelmente uma multidão começa a descer dos carros e se opõem a investida da autoridade. Quando o Policial percebe aquilo, alguém se aproxima e lhe oferece um gole de cerveja. O Policial ri, viu que não havia como lidar com a situação em meio ao caos. Ele agradece e rejeita a cerveja, mas logo coloca a moto no sentido certo e prossegue em direção ao litoral ultrapassando os carros entre as faixas.
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Como se fosse um gol do Corinthians, a multidão comemora. E repentinamente alguém começa a gritar: Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um e .... Todos gritam e se abraçam, desejando tudo que há de melhor nessa vida. O casal beija seus filhos, um a um, e dentre alguns conselhos sobre escola, comportamento e companhias, os pais desejam a eles um bom novo ano, e sem recuperação na escola.
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Quando Sebastião se dirige a sogra para dar-lhe o abraço, ela tem na face um semblante preocupado, enquanto o suor escorre pela sua testa. Ele se aproxima e faz seus votos de feliz ano novo, mas antes que ele consiga finalizar suas palavras, a sogra lhe interrompe.
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- Obrigado Tião, mas eu não estou passando bem. Você sabe que sou fraca para comida. Qualquer coisa que eu como e pronto. Acho que o salpicão me fez mal. Eu preciso de um banheiro!

Um comentário:

Unknown disse...

Meu....ótima essa ! Hilárica mas tem algo real e profundo...não do poço! hehe.