terça-feira, 17 de março de 2009

O ÉDEN, O INFERNO, E O NOSSO WIL SMITH INTERIOR.


No domingo, a luz acabou. E como um milagre desconfortável, o Faustão deixou de falar as bobagens costumeiras. Mas como eu iria ficar sem o futebol? É certo que futebol há muito deixou de ser um esporte para adentrar ao grupo seleto dos interessantes meios de marketing e negociatas. Parece que hoje se tornou mais importante o técnico do nosso time do que o cidadão que ocupa uma cadeira do legislativo, e que deveria legislar sobre a dignidade de nossa própria existência. E assim o verbo presente se tornou o pretérito imperfeito, onde tudo deveria ser com a gente queria, mas a gente não poderia, e não se uniria a quem revolucionaria, e concertaria essa porcaria, e deixaria tudo como deveria. Esse é o nosso dia.
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Na escuridão da atualidade das trevas percebo-me de que o avanço tecnológico deu-me a baixo custo um computador portátil, que o brasileiro adora chamar de notebook, ou de laptop. Eis uma boa oportunidade para abrir e limpar meu email, pois poderei ler todos aqueles emails inúteis em PPS (aliás PQP, para que contar piadas em PPS?), mas ao ligar a bagaça vejo que não posso fugir de mim mesmo na internet, porque o wireless está ligado atoa na tomada impotente. Estou sem luz, diacho!
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E penso em escrever algo, mas ao abrir o Word 2000, um alerta me manda fechar todos os programas, pois foi detectado um vírus que veio anexado a algum arquivo PDF daqueles que a gente tem que ler para acessar a listagem do INPI. Não entendo essa sigla PDF, pois acredito que FDP seria mais adequado.
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Então olho para a minha casa e vou a geladeira, tentar mastigar algum prazer enquanto a luz não volta. Mas o mundo hoje é rápido, e exige de nós decisões sumárias. Como não ando muito bem na arte do fitness, eu devo mexer as pernas e sair de minha casa. Mas para isso preciso de um telefone, e a modernidade inventou o telefone sem fio, que não funciona em dias de apagão. Que saudade daquele telefone cinza de disco giratório.
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Vou decidido até o portão e aciono insistentemente o controle remoto. Depois de chacoalhar o maldito controle por um bom tempo, tudo dando algumas porradinhas com ele na perna (como se controle remoto tivesse que chacoalhar antes de usas), percebo que de nada adianta essa tecnologia se a luz de casa, ausente, não pode fazer movimentar o motor de 0,5 HP que abre o mundo para mim todos os dias.
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Irritado eu volto a geladeira, mas logo recebo auxílio na tarefa de abrir o portão, que outrora só dependia de minhas mãos, mas agora depende dos computadores da COPEL. O carro que está a minha disposição sorridente, e que promete me levar da idade média para algum lugar no Século XXI está lá. Chave na ignição, um giro no sentido horário e nada. Mais uma vez e nada. Antes de levar a bateria a exaustão, lembrei do que Douglas havia me dito. Esse carro quando percebe que a gasolina é pouca, ele não liga mais. A tecnologia inventou isso para que ninguém mais fique com o carro na rua. Agora as pessoas ficam com o carro em casa mesmo. Como eu faço se sempre andei na reserva?
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Lembrando da Brasília do Guto, resolvi dar uma chacoalhada no carrão. Após uma espécie seção de levantamento de peso na posição em que napoleão perdeu a guerra, o carro super tecnológico resolve pegar. Pronto. Estou livre do cárcere de minha casa.
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Após me livrar da escravidão tecnológica, estou pelas ruas da cidade, mas não encontro pessoas. E foi assim que ao apagar da luz, pude perceber o quanto nos tornamos afastados de nós. Nos afastamentos um dos outros, e as vezes até de nós mesmos. Ocupados com o encantamento da tecnologia que criamos, não temos mais tempo de nos encontrar em silêncio. Quase não suportamos mais o silêncio, pois do MP3 ao MP10 já o roubaram de nós. E parece que ficou mais fácil viver nesse mundo onde não somos tão obrigados a conviver “com nós mesmo”. E porque a sonoridade do que escrevi é questionável, o word me adverte em vermelho tremido.
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Mas é assim mesmo, e eu devo me acostumar, pois a realidade é implacável. Criamos um mundo tão tecnológico que a pessoa passa a valer muito menos nele. E quem diria? Justamente eu que adorava ouvir histórias antigas de meus avós, agora pareço fugir de minha casa porque a luz me fez escravo. Que luz é essa?
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Horas passadas, ao retornar para a casa, todos estão dormindo, e a oportunidade de conversar com as pessoas que moram comigo se foi. Vou a geladeira fazer algo para mastigar em silêncio. E enquanto eu mastigava uma pequena porção de salame copa, a manchete do jornal que surge na tela da televisão que voltou a funcionar, é justamente a tecnologia que propicia.
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Um robô modelo, com a figura de mulher, pesando pouco mais de 40 kg, em virtude das emoções que foi programado para expressar, estará em breve desfilando nas passarelas da semana da moda em Tóquio. E não é de se duvidar, com essa tecnologia toda, que num futuro próximo estará estrelando algum desfile e destronando aquelas magrelas de carne e osso que outrora veneramos tanto.
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Mas desse meio caminho dos meus quarenta e dois anos, eu devo confessar que tenho algum medo. O medo de saber qual o destino dessas máquinas. O medo de vê-las substituindo a cada vez mais o ser humano. E quem sabe tenhamos tomado um caminho sem volta para que em breve, e muito antes do que a gente pensa, estejamos tomando café da manhã servido por um robô.
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Um café da manhã solitário e pacífico, pois não teremos dificuldade de reprogramar o robô que compramos na loja de artigos eróticos. Um robô com o qual não temos que falar após o sexo, e nem nos cobra o almoço na casa de parentes. Um robô que nos fará cada vez mais escravos de nossa casa, tornando-nos impróprios para convivência.
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Sim. Será o Éden Tecnológico. Nós homens teremos a possibilidade de escolher entre casar com uma companheira sem manual de instruções, ou simplesmente passar em alguma loja e adquirir o modelo RX1732, com cabelos negros, olhos azuis.
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Então, não teríamos que acompanhá-la no shopping. Apenas deixamos as clássicas vinte e quatro horas carregando na tomada e pronto. Ao apertar o “on” e seguir uma série de instruções, teríamos a companheira ideal em casa. E se alguma falha no programa tivéssemos cometido, e a RX tentasse discutir a nossa relação, lá estaria o botão “off” para nosso sossego.
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Mas para não dizer que sou machista, embora tenha sido criado nessa formatação, também haverá a possibilidade para as mulheres. Um robô com corpo de Paulo Zulú e o charme de algum outro artista, prontinho para a mulher, inclusive com a programação em modos: modo carinhoso, modo companheiro, e ou modo latino “caliente”.
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Por mais que seja machista, tenho certeza que qualquer mulher iria preferir um desses do que o meu mal humor com extrato bancário na mão (e nem no banco somos atendidos por pessoas), ou meu ronco depois da cervejada com os amigos. E se a mulher tem dor de cabeça lá está o “Standby”.
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E assim, do éden da tecnologia, ao inferno que ela criou, vamos nós, tropeçando e pastando no campo das benesses que inventamos, e hoje elas inventam a nossa possibilidade de ser feliz ou não, como uma simples loteria.
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Somos abençoados, mas enquanto houver luz nos domingos de nossas casas. Se a luz acabar, acabaremos sendo obrigados a conviver com algum ser humano insuportável como nós, o que na verdade se tornará um perfeito inferno.
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Como Wil Smith no filme “Eu Robô”, nos tornaremos ativistas contra nossas invenções infernais, de tecnologia celestial, e acabaremos tendo saudade daquele ser humano que um dia fomos, e mesmo daqueles com quem convivíamos aos trancos em barrancos. E se o texto parecer alarmista, basta usar da tecnologia do “Google” para pesquisar avanços da robótica. As seguintes notícias aparecem com a rapidez que só a tecnologia garante: Robô doméstico busca cerveja gelada; Robô-recepcionista testa habilidades de professora no Japão; Robô prepara chá para visitantes de evento na Alemanha; Robô japonês mostra habilidade na faxina.
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Com todas essas comodidades, para que um “ser humano insuportável” ao nosso lado? De insuportável basta a gente mesmo.
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Agora que acabei o texto, vou acionar a correção ortográfica automática, pois esqueci as regras de ortografia em função do conforto de saber que o word faz as correções para mim.
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Esse é o mundo que estamos criando, mas apenas enquanto temos luz.