sábado, 12 de janeiro de 2008

A GRANDE PESCARIA (Samuel Rangel)

Na terça-feira a noite recebi um convite de um grande amigo, e por gostar muito das coisas do mar, aceitei feliz a proposta. Tratava-se de um convite para embarcar em uma traineira (barco de pesca) de cem pés (cerca de trinta e três metros), para ir pescar em alto mar. Um pescaria fascinante, com linha 180, carretilhas gigantescas e peixes que com facilidade passam dos cem quilogramas.

Julgando-me um contemplado de loteria, viajamos e embarcamos no referido barco. Acima do nível d’água, a embarcação possui três andares herméticos e mais um aberto. E ainda acima do mirante do quarto andar, há uma enorme escadaria que leva até o mastro do guindaste, que se ergue cerca de 15 metros acima do nível do mar.

Quando chegamos lá, nosso amigo e proprietário do barco, recebia muito bem, já com a clássica Skol gelada, e com belas alcatras na churrasqueira. Com a primeira latinha na mão e um pedacinho de alcatra na outra, fui convidado a conhecer o barco, enquanto uma tripulação extremamente simpática e atenciosa providenciava o embarque de nossas bagagens e violões.

Pediram que eu mostrasse a diferença do som da viola para o violão, o que fiz com enorme alegria. De pronto eu já me imaginava cantando na imensidão azul iluminado apenas pelas luzes de proa do barco. E como sempre otimista, eu percebi que estava embarcando para uma grande pescaria.

Após algumas canções na viola, os marinheiros começam a resolver os últimos preparativos para a viagem. Como sempre gostei de aprender sobre tudo um pouco (quem sabe por não poder saber tudo sobre uma só coisa), ofereci-me para auxiliar os marinheiros nestes preparativos. Eles se riram, mas como havia tocado uma violinha, eu havia recebido um passaporte que me dava acesso aos primeiros aprendizados sobre navegação profissional. E como da navegação amadora eu e meu amigo Ronaldo já sabemos um bom tanto, achei que era uma boa oportunidade para estreitar minhas relações com o mar.

Olhando a popa do navio, percebia-se que parte da hélice estava para fora da linha d’água. A forma de resolver isso é que achei interessante. Uma mangueira de dez centímetros de diâmetro foi levada do atracadouro para o porão do navio. Imaginei que iam inundar parte do porão. Mas quando a mangueira foi acionada descobri que iriam encher uma pequena parte do porão d navio com gelo. Só a título de curiosidade, é interessante saber que o gelo é despejado ali a nada mais nada menos que cento e cinqüenta km horários. Um ruído ensurdecedor (lembrado carros de fórmula um) e o porão começa a receber o gelo.

Após dez toneladas de gelo a máquina é desligada, pois, a hélice voltou inteira para a água. No porão um clima de inverno curitibano, enquanto lá em cima no convés, o calor do litoral de Santa Catarina ofende nossas axilas.

Brinquei então com o marinheiro: E que horas vai chegar essa cerveja toda?

Antes que ele pudesse me responder, dois barris de chope são deslizados por corda até o porão. Jogamos os barris sobre o gelo e depois os enterramos sob uma camada de cinqüenta centímetros de gelo. Só depois é que começou a chegar a cerveja.

Mas muita lata de cerveja não é bom sinal em uma embarcação. Para cada duas caixas de lata que desciam ao porão, um novo convidado ia chegando para o embarque.

Voltei ao convés e vi a embarcação receber as dez toneladas de combustível (não sei por que não falam em litros), e comecei a perceber que junto comigo naquela loteria havia muitos outros ganhadores. Pessoas de todos os cantos do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul chegavam eufóricas para a primeira experiência em mar aberto.

Quando contei quarenta embarques, sabendo que o barco possui 18 camas de marinheiro, imaginei que cada pessoa dorme no máximo oito horas por dia. Como a pesca em mar azul não diferencia entre dia e noite, imaginei que no revezamento não faltariam lugares para repousar o cansaço do pescador aqui.

Todos os preparativos prontos, o barco dribla seu tamanho em belas manobras e sai pelo rio em direção ao mar. Como sou realmente vidrado em navegação, procurei o mirante aberto do quarto andar para ver aquele monstro de 150 metros cúbicos de madeira singrar o mar.

Cruzamos um navio cargueiro gigantesco, que desta vez, não teve sequer a honra de chacoalhar nossa embarcação com sua marola. Em outras oportunidades, quando estamos de lancha passamos por experiências bem diferentes.

Mas dessa vês estou embarcado um gigante dos mares.

Lá, do quarto andar, eu pude perceber a aproximação da barra. Ainda que sabendo tratar-se de um gigante, lembrando de Davi e Golias eu me sentei confortavelmente ao lado da coluna do toldo. E ali, segurei com firmeza ao perceber o tamanho das ondas que subiam nervosas na barra.

E não houve tempo para dúvida. Quando a primeira de três ondas levantou a proa do barco, já havia gente se atirando ao chão. E a proa mergulhou na segunda onda, que na reação lançou o barco ainda mais para cima. Naquele momento percebi que meu contato com o mar seria realmente molhado.

O barco mergulhou a proa na terceira onda e levantou uma coluna de água que nos cobriu no quarto andar. Então percebi que alguns substituíam a cara de animação que exibiam quando o barco estava parado, por perguntas e mais perguntas. Imaginando não ser eu o cara ideal para responde-las satisfatoriamente, eles foram descendo.

Passada a agitação da barra, o mar não se revelava muito simpático, mas ainda assim extremamente convidativo à navegação. Dali, vi o por do sol, imaginando a minha patroa que está em Nova York passando um frio e tanto. E o mar me chamou a saudade. Com ela troquei alguns torpedinhos por celular, que alternavam entre declarações de amor a ela e ao mar.

A noite caiu, mas ainda assim pude perceber que a direção que havíamos adotado era bem diferente daquela do plano inicial. Perguntando ao comandante qual a razão do desvio, ele sorri e apenas apontou o convés. Logo ali, no começo da navegação, já havia ao menos vinte caras debruçados na balaustrada do convés devolvendo ao mar aquilo que haviam comido em terra.

Decepcionado, mas sabendo que estava ali por um brinde de amigos, aceitei a situação, e vi o barco se aproximar de uma ilha. Lá o comandante abrigou a nau do lado sudoeste da ilha, protegendo os enjoados dos balanços que o vento nordeste vinha nos proporcionando.

Baixado o ferro a embarcação ainda balançava bastante, mas ao subir no mirante do mastro principal, não vi mais nenhum mareado no convés. Desci, busquei as minhas cervejinhas e voltei para o mirante. Ali, quinze metros acima do nível do mar, eu puder ver chegarem as lulas e um cardume enorme de peixes voadores.

Começaram então a pescaria das iscas. Enquanto a tripulação do navio puxava uma lula atrás da outra, eu ficava observando dali de cima os peixes voadores alçarem do mar de levantarem-se cerca de cinco ou sei metros de altura. Muitos deles se chocavam inclusive contra a embarcação. Não vou contar que um deles pulou para dentro do barco por que todos achariam que é mentira, apesar de ser verdade. Como pescadores e advogados andam com a credibilidade em baixa, deixo o registro no texto para as conclusões de cada um.

Só um pouquinho que acabou a luz aqui em casa.

Opa! Voltou! Que bom!

Voltando ao texto, tomei ali as minhas cervejinhas até que o sono aparecesse. Desci da escadaria e fui para as cabines do primeiro piso. Quando entrei na casaria, aquilo mais parecia o mapa do inferno.

Aqueles mareados que não estavam no convés deveriam ter ficado por lá mesmo. Mas não. Eles resolveram ir deitar-se nas cabines. E das doze camas do primeiro andar, não havia nenhuma desocupada. Pelo contrário, a situação era crítica, pois para alguns mareados o enjôo não havia passado, e a situação do chão era bem escorregadia.

Coloquei as mãos na cabeça e pensei. Passar a noite no convés tocando violão enquanto os caras vomitam, não é exatamente a minha idéia para este momento. Eu e Ronaldo então lembramo-nos das cabines do segundo andar, e fomos para lá sorrateiramente.

Quando entramos na cabine do imediato, dois beliches vazios se apresentaram como conforto para a noite inteira.

Sabendo que naquela noite não pescaria nada, sentindo o balanço do colo do mar, peguei no sono rapidamente. Lembro-me de uma vaga interrupção quando alguém comunicava o Ronaldo que não poderia se deitar naquela cama. Ronaldo se levantou imediatamente, e eu, fechei os olhos com mais força. Como tenho um sono pesado, teriam que me carregar dali ainda que eu estivesse acordado.

A luz da cabine se apagou e eu voltei ao sono.

Quando eram cinco horas da manhã, eu acordei disposto, pois havia sentido o barco navegar durante a noite. Com certeza, aquele balanço era de um belo pesqueiro.

Desci animado para o convés. Ronaldo olhou para mim rindo enquanto preparava a linha de mão (180). Então eu fui até a cozinha do barco e pedi um café para o cozinheiro. Tomei ali o café que me despertou. Quando vi a cena ao redor não era mais o mapa do inferno. Era na realidade o catálogo de endereços do inferno.

Na balaustrada pareciam um monte de árabes reverenciando sabe lá o que. E havia tanta gente passando mal que não havia lugar para descer a linha quase.

Sim. Lugar até havia. Mas como alguns mareados não sabe que não se deve vomitar contra o vento (um veto de cerca de 10 nós), conforme o lugar que você estivesse no convés você poderia levar um pão com mortadela na orelha.

Ali então percebi que a pescaria não seria fácil, principalmente por que, quando o sol nasceu, aproximadamente as cinco e meia, pode-se ver que o mar estava bastante revoltado. Os mareados não tinham a menor chance de melhorar.

Afoito pelo peixe dos sonhos, fui me posicionando na balaustrada há uma distância segura de um moleque fantasmagórico. Um outro senhor ao lado dele, parecia em melhores condições, mas na realidade só era mais controlado mesmo.

E ali, olhando para o mar que levantava ondas da altura de dois metros que se chocavam contra a murada do barco, desci cem metros de linha juntamente com Ronaldo. Um olhava o mar, outro cuidava da linha e um terceiro que não era nem eu nem ele (acho que era nosso anjo da guarda), cuidava dos jatos que vinham de dentro dos mareados.

Quando a linha começou a puxar forte, o comandante do barco faz soar a sirene do navio. Estávamos de partida. Como havia muita gente passando mal, ele teria que voltar cerca de trinta milhas em direção a oeste para tentar se abrigar em alguma ilha, até que os mareados melhorassem.

Como não é nada inteligente desafiar o comandante da embarcação, recolhemos os cem metros de linha. Com as pernas doendo pela ginástica de tentar se equilibrar no convés, e ao mesmo tempo se esquivar da dos mareados e seus lançamentos, agora nós tínhamos ainda os braços cansados de puxar aquela linha com uma chumbada para mar revolto em profundidade de oitenta metros.

Com a linha na carretilha, eu Ronaldo fomos para o quarto andar, onde não ficavam os mareados. Lá, livre dos ataques “pós gastronômicos”, o Ronaldo me contou que não havia dormido. Então sob o sol, estendeu u colchão e resolveu repousar.

Mas uma vez estava aquele belo barco navegando valente aquele mar revolto, e então pude voltar a pensar na vida, na patroa, no filhão, e até mesmo no blogue onde ando escrevendo pouco.

Passei com certa alegria o divisor de águas (que divide o mar azul do verde mar), pois sabia que por ali em algum lugar haveria uma enseada para poder devolver a vida aos marujos de primeira viagem.

Paramos então perto de Florianópolis, numa ilha que fica em frente ao Costão do Santinho. Ali, abrigados, os seres pálidos que assombravam o convés com seus poderosos jatos mareados, começaram a voltar à vida. Foram ganhando cor, começaram a falar, e depois alguns até sorriram. A maior parte continuava com a postura de saco de batatas estendidos nas cabines.

Depois de uma lavagem completa no convés, acendemos a churrasqueira e começamos a farra.

Mais ou menos seis latas depois, um pão com lingüiça, um quarto de alcatra e mais ou menos 250 gramas de maionese, o comandante resolveu voltar ao pesqueiro para uma segunda tentativa.

Animado fui correndo preparar a linha, mas enquanto preparava, notei que o vento nordeste tinha perdido a força. Como sempre me foi dito pelo bom companheiro de mar, o Max, “quando o nordeste sopra, quem responde é o sul”.

Pronto.

Então estávamos nós rumando ao mar aberto novamente, porém, desta vez a previsão é de que entraria um sul daqueles. Lembrei dos mareados e do que haviam comido no almoço. Calma lá gente. Pão com mortadela ainda vai lá, mas alcatra com maionese não vai dar não.

Preparei minha estratégia. Colei na balaustrada desde o momento da partida e enrolei algumas linhas que me dariam ao menos dois metros de segurança contra os mareados. Eu e Ronaldo assumimos a posição para defender nosso pedaço de pescaria.

Navegamos com certa tranqüilidade até o local, mas alguns já havia morrido pela segunda vez na viagem. Como eu passaria somente mais uma noite em alto mar, havia decidido que n ao iria mais dormir. Daqui não saio e daqui ninguém me tira.

Animados descemos a linha com o barco ainda a deriva.

Repentinamente, o vento parou. E a bandeira do Brasil do mastro principal apontou para o norte. As ondas começaram a encaracolar e mostrar seus carneirinhos contra o vento. Volumes de água passavam da altura da murada do barco. Então não teve outra forma.

Eu e Ronaldo havíamos ficado com o lado do barco maré contra, e a linha corria perigosamente sob o casco. Tínhamos que buscar uma solução rápida. Fomos para bombordo e lá demos de cara com duas filas. Uma de pessoas que se amontoavam para tentar um peixe, e a outra, bem maior, de caras que passavam mal e botavam para fora tudo que era maior que eles.

Eu e Ronaldo então ficamos ali na espera.

Chegávamos para um que vomitava e perguntávamos se aquilo era o café da manhã ou o almoço. Perguntávamos isso para saber quanto tempo ainda teríamos que esperar para tentar a sorte de um peixe. Depois de muitos hugos, joaquins, alceus e paulos, conseguimos um pedacinho para pescar.

Repentinamente a linha vai com vontade ao fundo, e lá vinham os primeiro prêmios.

Quando tínhamos no convés dois dourados e um cação, o apito do bar soa novamente. A marinha havia avisado que a coisa iria piorar bastante. O vento que já estava a cerca de 18 nós, dobraria de velocidade na próxima meia hora, e depois disso, com precisão de tempestade.

Pronto.

Lá estávamos nós com os braços trabalhando para se recolher as linhas. Eu e Ronaldo já não sorríamos mais, pois era muita sacanagem.

Na viagem de volta, entre ondas que cruzavam o convés arrastando tudo e todos, algumas dezenas de meia emborcadas e muita emoção, quando estávamos a cerca de meia hora do porto, o vento diminuiu.

Um dos mareados chegou a gritar: Vamos voltar então!

Sentindo um ódio corroer meu coraçãozinho pescador de ilusões, ainda pude ouvir o comandante comunicar que assariam na brasa os nosso dois dourados e nosso cação.

Um multidão de mareados começa a aplaudir.

Tive vontade de me jogar na água, mas o Ronaldo me segurou.

Quando aportamos, enquanto o povo comia nossos peixinhos, eu resolvi tomar banho e preparar as coisas para a volta para Curitiba.

Ainda no carro eu e Ronaldo voltamos a rir, e preparamos alguns conselhos.

1) Se você sofre de enjôo no mar, procure ficar em terra;
2) Se você não ouviu o primeiro conselho, antes de botar o mundo para fora, procure ver a direção do vento;
3) Se você não consegue saber a direção do vento, tente observar se o que sai da tua boca acaba indo parar na tua sobrancelha. Procure então a extremidade oposta do barco, pois você está contra o vento;
4) Se você não conseguiu fazer isso, se jogue no mar;
5) Se você não consegue se jogar no mar, avise que nós fazemos isso para você;
6) Se tudo isso não der certo, ao menos respeite a noção de dentro e fora, e procure manter as cabines do barco secas;
7) Se você mareou uma vez, provavelmente venha a fazer isso com bastante freqüência.
8) Se você mareia, não vai pegar um dourado de mar nunca, a menos que seja na peixaria.

Pois bem. Peço desculpas aos companheiros de viagem, mas foi uma forma espirituosa de falar do tema.

E agora, depois deste relato, vou me deitar um pouco que desde que desembarquei, a cerca de 14 horas, o mundo ainda não parou de balançar. Mas vai melhorar!

Um comentário:

Lili Marlene disse...

Oie!
hahha, que ódio essa pescaria! Eu adoro o mar, confesso que nunca naveguei em alto mar, então não sei se eu seria uma das mareadas ou não.
Se algum dia eu descobrir, te aviso!
Bjo