Aos quatorze anos, com não mais que cinco pelos no queixo, eu era sócio do Clube Cefet. Digo que era sócio do Centro Federal de Educação Tecnológica, em função de que eu passava mais tempo nas atividades esportivas e no clube do xadrez, do que em sala de aula. As salas de aula do Cefet na época tinham uma cor que a cromoterapia jamais aconselharia. Também é justo dizer que não entendo o real motivo de ter me embrenhando em meio aos transistores e resistências do curso de eletrônica, mas é justo registrar que havia meninas maravilhosas naquela escola. Exemplo maior era Isaura, de cabelos negros cacheados e olhos azuis. Por onde andará Isaura? Casada com certeza, divorciada talvez.
Mas como todo menino ansioso, de que me adiantaria ser sócio de tão belo clube e não participar de Natação (a primeira vez que entrei em uma piscina térmica), Voleibol (eu era uma espécie de líbero, mas como não existia isso na época, eu era um boleiro dentro da quadra), Basquete (aqui sim joguei alguma coisa e cheguei a treinar pelo Cefet) e Handebol (que cheguei a treinar pelo Cefet também, esporte para o qual realmente eu tinha jeito, apesar de que jeito no handebol é o que menos conta).
Com essa maratona diária de atividades esportivas, eu chegava em casa normalmente por volta das vinte e três horas, descendo do ônibus Vicente Machado, na esquina do açougue Primor. Naquela época, o bigorrilho não era um bairro iluminado, mas não havia assaltantes suficientes para dar início a um processo estatístico.
Lembro-me que certa oportunidade, Laxixa, o dono de um bar que ficava colado com o açougue e o mercadinho do Seu Freitas, havia adotado um cachorro, porém, ao fechar o bar, Laxixa colocava um caixote de madeira para fora com algumas folhas de jornal. Ali dormia o cão de guarda do bar.
Eu fui notificado da adoção da pior forma possível. Ao descer do ônibus, tão logo virei a esquina, lá estava o encorpado cachorro com os dentes a mostra. E eram dentes grandes e assustadores, cuja lembrança só me deixou em paz, ao fazer terapia no Canil da Polícia do Exército do Quartel General, apenas cinco anos mais tarde.
Quando percebi a fera com os dentes mirando minha altura média, percebi que era hora de correr. E corri mesmo. Um esportista, com 75 kg de músculo, correndo como velocista de um guapeca adotado de bar, mas com dentes bem convincentes. Absorvi a idéia de tanto reviver a situação. Lá estava o cão, lá estavam os dentes, e lá estava o Samuel correndo com um cão, digo, mais que um cão. Todas as noites, meu nada amistoso treinador me esperava na esquina para me aplicar o último condicionamento físico do dia.
Numa dessas noites, o cão que era extremamente inteligente, mas nem tanto, resolveu esperar o garotão mais próximo da esquina, realizando a primeira tocaia canina que tive conhecimento na vida. Ao virar a esquerda rente a parede, não tive tempo de reagir. Quando vi, lá estava a besta com os dentes cravados na minha canela. Consegui que o bichinho largasse o osso ao aplicar uma bela malada na orelha, com a mala do Cefet que tinha um transformadorzinho 12V/110V.
Acreditei que aquilo era suficiente.
Ao chegar em casa, e constatar os estragos da mordida, resolvi ocultar o ocorrido de meus pais. Antigamente, as vacinas anti-rábicas eram aplicadas bem no meio do umbigo. Sensação que eu não gostaria de reviver. Na farmácia do seu Américo, nas proximidades da Igreja dos Passarinhos, fiz o curativo e me virei sozinho. Ao menos a altura da mordida não havia danificado a calça de brim cinza, nem furado o meu sapato mocassim.
Naquela mesma noite, ao descer do ônibus, senti latejar a mordida no tornozelo, e resolvi passar mais longe da parede. Foi o primeiro ponto que fiz no jogo de cão e cagão com o cachorro. Ele estava me esperando colado na parede, mas ao ver que passei longe, avançou e eu corri sem dar a ele mais uma porção de canela para o jantar.
Nas noites seguintes, resolvi descer um ponto antes, para não me deparar com a perigosa besta, mas após andar duas quadras a mais durante uma semana, percebi que a ferida da mordida não ia cicatrizando bem. Voltei ao Seu Américo, que me disse que eu deveria evitar andar muito, ao que aplicou um antisséptico e mandou-me seguir a vida.
Já fazia mais de um mês que o animal me dedicava uma perseguição irracional. Fiquei revoltado, e fui conversar com o Laxixa sobre o devorador de estudantes que matinha à sua porta. Fui em marcha acelerada, lembrando o que hoje se chama de “um consumidor ciente de seus direitos”. Vou chegar lá e mandar o Laxixa dar um sumiço nesse cachorro, pensava eu.
Após três quadras de marcha acelerada, quando avisto o bar, vejo o devorador de canelas deitado a frente do bar. Lá estava o animal, que ao me ver a cerca de vinte metros, arreganhou os dentes e partiu em minha direção. E lá estava eu correndo novamente. Já não bastava os corridões noturnos que eu levava todos os dias, agora a anta tinha que fugir do cachorro de dia também?
Tentei por mais algumas vezes, porém, quando percebia o cão na frente do bar, eu desviava e seguia para o CEFET. Eu sabia que o cão não poderia montar guarda para sempre. Um belo dia, ao ver o bar, percebi a caixa vazia. Essa é a oportunidade. Eu havia me tornado um estrategista, e por isso eu venceria o cão irracional. Ao entrar no bar, fui direto ao Laxixa e mostrei-lhe a canela, dizendo que havia sido o seu cão que tinha executado tão belo serviço. Laxixa riu, e disse estranhar aquilo. Segundo Laxixa, o cão passava o tempo todo ali e não havia atacado nunca ninguém. Enquanto eu insistia na acusação, o cão lazarento entra no bar, com a cauda pitoca chacoalhando, e vai até Laxixa, que prontamente tira algo da compota e joga para o guapeca.
Pronto. Ali estava um cachorrinho angelical, balançando a caudinha cortada para o dono do bar. O interessante é que aquela gracinha, tinha exatamente as mesmas característica do cão que tentava me devorar pelas canelas todas as noites. Então Laxixa abaixa, dá uma coçada naquela cabeçorra quadrada, e diz: Não morda ele urso, ele é amigo! Ele é amigo! Aquele indecente do cão fez cara de que entendeu o recado, e até fiquei tranquilo, pois na frente de Laxixa eu dei uma coçadela nas costas do amigável cãozinho.
Ao descer do ônibus a noite, eu pensava que tudo havia sido resolvido, mas lá estava o cão novamente de tocaia, e a conversa civilizada que havíamos tido durante o dia, era cessar fogo entre árabes e israelenses. Foi só a ONU virar as costas e a guerra havia recomeçado. Em função daquilo, pensei em desenvolver um relacionamento amigável com o cão. Noites depois, na saída do CEFET, tive a idéia de comprar um pão. Antes de chegar na esquina, joguei o pão e o cão foi logo abocanhar. Enquanto ele comia, fui conversando com ele para tentar um relacionamento estável com o animal. Ao engolir o pão, o cão não havia percebido que eu tinha o jogado. E lá estava eu correndo pela enésima vez do feroz animal.
Mas isso não poderia durar para sempre. Definitivamente não. Não bastasse o estresse que eu tinha no CEFET, ainda tinha que me submeter aos ataques insanos daquela besta.
Uma colega minha de ônibus da Vicente, Amarilda, havia testemunhado alguns ataques pessoais do animal contra mim. Solidária ela me deu a solução do problema. Ela mesmo havia sido atacada pelo cão meses antes, mas apenas se abaixou, pegou um pedra no chão e atirou no cachorro. E ela registrou ainda que não era necessário acertar no animal. Era só jogar a pedra e o respeito se instalaria magicamente. Em função daquela estratégia, havia um acordo de paz entre ela e a fera. Eles tinham encontrado um ponto de equilíbrio no difícil relacionamento homem e animal.
Naquela noite, transtornado com a situação, quando desci do ônibus, decidi colocar um ponto final. Como o cão sempre estava de tocaia, eu não tinha certeza de que poderia pegar uma pedra já com o ataque em andamento. Então adiantei o expediente. Havia um pedra no chão que prontamente juntei sem fazer qualquer escolha. Passei a mala para a mão esquerda e segurei a pedra com a direita junto ao corpo. Afastei-me cerca de sete metros da parede que o cão usava de cobertura e andei na direção do embate. Ao alcançar o ângulo de visão do cão, ele saltou contra mim. Em uma reação pronta e rápida, atirei a pedra na direção do cão, e quando vi, lá estava ele estendido no chão logo após um ganido estridente. Resolvi acelerar o passo sem parar para esperar o cão acordar. Eu havia solucionado o problema e pronto.
Na manhã seguinte, ao passar pelo bar do Laxixa, vi uma aglomeração junto a caixa onde ficava o cão. Ao aproximar, percebi que o bolinho de pessoas olhava para o cão gravemente ferido, ao passo que um deles, dizia que aquilo havia sido atropelamento. Algum Opala 250 S, Maverick ou Galaxie, havia passado por cima do pobre animal que agonizava.
Ao me aproximar e compor o bolinho, o cão levanta os olhos para mim, e tenta sair correndo ao mesmo tempo que chora. Todos olham com estranheza, mas não causo nenhuma suspeita. A esposa do Laxixa olha para mim e diz: Ele está assutado. Foi atropelado esta noite. Peguei o rumo do ponto de ônibus com a certeza de que o cão não sobreviveria, o que mais tarde veio a se confirmar.
Quando Amarilda soube da morte do cão, veio me indagar sobre o ocorrido. No primeiro momento neguei, mas ao ser tranqüilizado por ela, lembrando que o cão era um peste, acabei confirmando a autoria do canicídio. E ela perguntou como eu havia conseguido matar um cão com uma só pedrada. Nem eu sabia a resposta, mas na conversa mais tranquila de quem pega o ônibus em paz, acabei percebendo a falta de sorte do cão.
Primeiro, o cão não tinha nada que ter se feito de santo para o Laxixa, ao mesmo tempo que o Laxixa não poderia fechar os olhos para a situação. Posteriormente vim a saber que eu havia sido uma espécie de vingador misterioso do bairro. O animal havia colecionado canelas durante um bom tempo.
Segundo, o cão poderia ter aceitado aquele pedaço de pão como uma proposta de trégua, ou mesmo pedágio.
Mas a real falta de sorte do cão, é que a primeira pedra que me apareceu na frente naquela oportunidade, era um dos históricos paralelepípedos da Vicente Machado ( não se fazem mais paralelepípedos como antigamente).
O segundo fator real que influiu no seu infortúnio previsível, foi de que eu treinava Handebol desde os meus onze anos, no Colégio Rio Branco, e tinha uma pontaria invejável, associada a um arremesso bastante forte, que havia entortado alguns dedos de colegas de esporte.
Por último, e o mais grave, é que alguém com o esfincter contraído, não pensa muito. Embora eu tivesse lembrado dos conselhos de Amarilda ao juntar a pedra, eu não consegui lembrar que não era para acertar o infeliz dentuço. Em um ato reflexo, o animal já era.
Senti muita vergonha de ter cometido aquele ato durante muito tempo, mas de certa forma, isso me facilitou muito o aprendizado do que era uma Causa Supra-legal de Excludente de Antijuridicidade, como fator decisivo na absolvição de um acusado. Eu já havia vivido uma Inexigibilidade de Conduta Diversa.
Estou ciente de que a situação permite várias críticas, e surge a imagem de minha amiga Lu, como protetora dos animais, furiosa e com o dedo jogando bilhar com a bola do meu nariz, mas embora eu tenha vergonha de ter agido certo (apenas certo demais), gostaria de invocar outras causas para afastar de mim qualquer condenação. Eu era menor de idade, e já se passaram 25 anos deste fato. O bar do Laxixa não existe mais, e o lapso temporal faz com que a pretensão punitiva tenha sido atingida já pela prescrição.