quarta-feira, 26 de setembro de 2007

SENHOR TENDE PIEDADE DE NÓS (Manoel Manhães)

Não publico textos que não são meus, porém, ainda que não tenha certeza de quem é o texto, pela sua criatividade e colaboração com a análise do momento atual desse país, sinto-me obrigado a deixa-lo aqui como manifesto.

BEM BOLADO
Pelo projeto político do deputado Clodovil
Pelo "espetáculo do crescimento" que até hoje ninguém viu
Pelas explicações sucintas do ministro Gilberto Gil
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo jeitinho brejeiro da nossa juíza
Pelo perigo constante quando Lula improvisa
Pelas toneladas de botox da Dona Marisa
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo Marcos Valério e o Banco Rural
Pela casa de praia do Sérgio Cabral
Pelo dia em que Lula usará o plural
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo nosso Delúbio e Valdomiro Diniz
Pelo "nunca antes nesse país"
Pelo povo brasileiro que acabou pedindo bis
Senhor, tende piedade de nós!

Pela Cicarelli na praia namorando sem vergonha
Pela Dilma Rousseff sempre tão risonha
Pelo Gabeira que jurou que não fuma mais maconha
Senhor, tende piedade de nós!

Pela importante missão do astronauta brasileiro
Pelos tempos que Lorenzetti era só marca de chuveiro
Pelo Freud que "não explica" a origem do dinheiro
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo casal Garotinho e sua cria
Pelos pijamas de seda do "nosso guia"
Pela desculpa de que "o presidente não sabia"
Senhor, tende piedade de nós!

Pela jogada milionária do Lulinha com a Telemar
Pelo espírito pacato e conciliador do Itamar
Pelo dia em que finalmente Dona Marisa vai falar
Senhor, tende piedade de nós!

Pela "queima do arquivo" Celso Daniel
Pela compra do dossiê no quarto de hotel
Pelos "hermanos compañeros" Evo, Chaves e Fidel
Senhor, tende piedade de nós!

Pelas opiniões do prefeito César Maia
Pela turma de Ribeirão que caía na gandaia
Pela primeira dama catando conchinha na praia
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo escândalo na compra de ambulâncias da Planam
Pelos aplausos "roubados" do Kofi Annan
Pelo lindo amor do "sapo barbudo" por sua "rã"
Senhor, tende piedade de nós!

Pela Heloisa Helena nua em pêlo
Pela Jandira Feghali e seu cabelo
Pelo charme irresistível do Aldo Rebelo
Senhor, tende piedade de nós!

Pela greve de fome que engordou o Garotinho
Pela Denise Frossard de colar e terninho
Pelas aulas de subtração do professor Luizinho
Senhor, tende piedade de nós!

Pela volta triunfal do "caçador de marajás"
Pelo Duda Mendonça e os paraísos fiscais
Pelo Galvão Bueno que ninguém agüenta mais
Senhor, tende piedade de nós!

Pela eterna farra dos nossos banqueiros
Pela quebra do sigilo do pobre caseiro
Pelo Jader Barbalho que virou "conselheiro"
Senhor, tende piedade de nós!

Pela máfia dos "vampiros" e "sanguessugas"
Pelas malas de dinheiro do Suassuna
Pelo Lula na praia com sua sunga
Senhor, tende piedade de nós!

Pelos "meninos aloprados" envolvidos na lambança
Pelo plenário do Congresso que virou pista de dança
Pelo compadre Okamotto que empresta sem cobrança
Senhor, tende piedade de nós!

Pela família Maluf e suas contas secretas
Pelo dólar na cueca e pela máfia da Loteca
Pela mãe do presidente que nasceu analfabeta
Senhor, tende piedade de nós!

Pela invejável "cultura" da Adriana Galisteu
Pelo "picolé de xuxu" que esquentou e derreteu
Pela infinita bondade do comandante Zé Dirceu]
Senhor, tende piedade de nós!

Pela eterna desculpa da "herança maldita"
Pelo "chefe" abusar da birita
Pelo novo penteado da companheira Benedita
Senhor, tende piedade de nós!

Pela refinaria brasileira que hoje é boliviana
Pelo "compañero" Evo Morales que nos deu uma banana
Pela mulher do presidente que virou italiana
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo MST e pela volta da Sudene
Pelo filho do prefeito e pelo neto do ACM
Pelo político brasileiro que coloca a mão na "m"
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo Ali Babá e sua quadrilha
Pelo Gushiken e sua cartilha
Pelo Zé Sarney e sua filha
Senhor, tende piedade de nós!

Pelas balas perdidas na Linha Amarela
Pela conta bancária do bispo Crivella
Pela cafetina de Brasília e sua clientela
Senhor, tende piedade de nós!

Pelo crescimento do PIB igual do Haití
Pelo Doutor Enéas e pela senhorita Suely
Pela décima plástica da Marta Suplicy
Senhor, tende piedade de nós!

Para que possamos ter muita paciência
Para que o povo perca a inocência
E proteste contra essa indecência
Senhor, dai-nos a paz !!!

QUEM MATOU TAÍS? (Samuel Rangel)

Dia 20 de setembro de 2007 – Primeiro Dia

10:08 - Como nesse país a Polícia vai mal das pernas, a Justiça anda dando seus tropeços, o Ministério Público troca farpas com o governador, e as vítimas vão se enfileirando, e sabendo ainda que este fato não passa de mais uma das intrigas de uma novela global, resolvi assumir o cargo de Delegado das investigações para desvendar o mistério: Quem matou Taís?

10:09 - E na presidência do Inquérito Policial Fictício, usando dos poderes que só a dramaturgia pode me conceder, vou tentar nomear minha escrivã a maravilhosa Daniela Cicarelli (http://www.daniellacicarelli.hpg.ig.com.br/). Por que dessa nomeação? Se como todos os inquéritos de políticos no Brasil, esse não der em nada, ao menos a presença dela é certeza de boas gargalhadas, além do que, ao final, quem sabe a gente possa pegar uma "praínha".

10:30 - Como boa parte dos delegados, assumo o caso bem depois do ocorrido, e como normalmente acontece, não sei de nada. Opa!!!! Preciso então de um informante. Mas como os informantes ganham dinheiro no Brasil? Essa resposta seria censurada. Então, apesar de posteriormente ter certeza de que serei acusado de nepotismo, é melhor chamar para informante minha tia. Ela não perdeu um capítulo dessa maldita novela.

10:31 – Parada para o almoço. Na porta da sala coloco a placa “Volto as 15:30”. Sempre tive esse sonho.

15:55 – Chego à delegacia um pouco atrasado. Descubro que a viatura não tem gasolina. Mando buscar. Descubro que viatura esta sem motor. Mando buscar. Descubro que a viatura esta sem rodas. Mando buscar. Descubro que a viatura esta sem lataria. Mando buscar.

16:00 – Embarco em uma viatura montada com o auxílio dos desmanches de Curitiba. Vou até a casa dela, minha tia, em companhia de minha escrivã de mini-saia, pois fazia bastante calor em Curitiba naquele dia (coloquei isso no texto pensando em romances policiais americanos). Consegui várias informações, mas minha escrivã não anotou nenhuma. Na delegacia estamos sem papel, sem caneta, sem policiais, sem vergonha e tantos outros “cem”, se é que me entenderam. Como forma de pagamento para a minha tia, ofereci a ela uma parceria. Eu repasso a ela as informações que vou levantando no inquérito e ela vende para a imprensa. Daí então racharemos a grana.

17:00 - Volto para a Delegacia e fecho a mesma. Como estamos sem policiais deixamos a chave da carceragem com um preso de confiança, apesar de que, não confio tanto assim nele.

Fomos jantar, e essa parte não interessa.

Dia 21 de setembro de 2007 – Segundo Dia

10:00 – Chego a Delegacia e solicito todas as anotações do inquérito. A pasta chega à minha mesa vazia. Apenas alguns números anotados. Como investigador perspicaz, comecei a ligar para os números.

10:47 – Daniela vem me convidar para um almoço, e muito simpática me indaga sobre os avanços da investigação. Então disse a ela que não havia tido progresso, pois aqueles números estariam em código. Então Daniela me informa que eram seus palpites para o Jogo do Bicho. Como não podia dar sinal de fraqueza, disse a ela que seria uma grande idéia interrogar o bicheiro após o almoço.

15:55 – Cheguei um pouco atrasado na delegacia em função do trânsito curitibano da hora do almoço. E recebo a péssima notícia. A Delegacia de Furtos e Roubos de Veículo havia apreendido minha viatura por se tratar de uma montagem de cinco veículos roubados.

15:56 – Lembrei então que sou eu quem escreve esta merrrrrrda deste texto. Aparece um Audi TT (http://www.audi.com.br/home/index.aspx) em frente a Delegacia. Daniela olha para mim e diz: Vamos em seu carro mesmo então.

16:00 - Embarquei no conversível e fomos até o Bicheiro. Lá chegando ele me informa que já havia pagado o mês, mas como assumi o personagem há só dois dias, acho que o outro delegado ficou com essa parte. Fui logo tirando minha pistola que estava maior do que nunca. Daniela suspirou.

Perguntei ao Bicheiro: Confesse que foi você que matou Taís. Assine aqui. Vamos!

O Bicheiro me pergunta: Qual Taís?

Fiquei confuso e liguei para minha tia. Ela esclareceu, e eu então disse a ele: A gêmea má!

E ele perguntou: Da novela?

Eu disse: Isso!

Então ele se fez de desentendido: Mas a gêmea má não era a Rute?

Eu então falei: Essa era outra novela que poucos leitores vão lembrar. Vamos! Confesse!

Então o bicheiro me sugere que eu vá investigar isso no Rio de Janeiro, onde ficam os estúdios da Globo, onde se passa a novela e tal e coisa.

16:06 – Pensei que seria uma bela oportunidade de ir à praia com Daniela. Compramos passagens para o dia seguinte, pois não sou obrigado a viajar fora do expediente.

22 de setembro de 2007 – Terceiro Dia

10:00 – Com minha sunga com elástico "extra-forte" na mala, chego ao aeroporto para embarcar no meu vôo, mas ele atrasou. Eu e Daniela ficamos no saguão do aeroporto conversando e rindo do nervosismo das pessoas (não fique irritado comigo, pois lembre-se que eu sou só um delegado da minha própria novela. Não posso fazer nada com a Anac).

16:55 – Embarcamos em um Airbus 300 seguindo para o Rio de Janeiro, e o que faço fora do expediente não é de interesse público.

23 de setembro de 2007 – Quarto Dia

10:00 – Saímos da Praia e fomos direto para a rede globo. Lá, eu que já estava armado (entendeu?), fui logo falando para o Autor da Novela: Quem foi que matou Taís?

Ele então me disse que não sabia ainda.

Então eu falei para Daniela que deveríamos ficar de olho nele. Ele apenas me passou o nome de alguns suspeitos: Ana Luísa, Antenor, Belisário, Cássio, Daniel, Eloísa, Hermínia, Ivan, Lúcia, Marion.

10:55 – Voltamos para a praia.

15:59 – Fomos à Central Globo de Produções e começamos a Investigar os suspeitos. Comecei por Antenor. Quando o vi transitando pelos jardins da Globo, fui logo pegando minha pistola de calibre grosso. Pulei em cima dele e perguntei: Confesse! Confesse! Confesse que foi você que matou Taís.

19:00 – Acordei no Hospital Souza Aguiar. A Segurança da Globo me havia colado o brinco e eu havia desmaiado. A última coisa que lembro é que quando eu gritava confesse, o cara dizia: Eu sou o Toni Ramos. O Toni Ramos. Eu havia achado ele tão parecido com Antenor. Meu faro policial havia falhado.

24 de setembro – Quinto Dia

10:00 – Voltei aos estúdios da Rede Globo, mas não consegui entrar, pois a muleta não passava pelo detector de metais. Eu e Daniela então voltamos para a praia. Daniela atenciosamente segurava minha muleta enquanto eu me banhava no mar carioca.

25 de setembro – Sexto Dia

10:23 – Voltei aos estúdios da Rede Globo, mas não consegui entrar, pois a segurança tinha ordens de me manter afastando de Toni Ramos. Então eu e Daniela não desistimos. Resolvemos ir à praia e voltar no dia seguinte.

21:45 – Naquela noite, quando menos esperávamos, estávamos sentados em um bar em plena Copa Cabana, vimos o Autor da Novela entrar no bar. Expliquei a ele a situação. Ele riu, mas sentou-se comigo. Então ele começou a me dizer o que realmente estava acontecendo.

Ele me contou que Paula era uma das principais suspeitas, pois já havia declarado várias vezes que o único jeito de ela resolver seus problemas seria com a morte de Taís, que já havia lhe prejudicado demais e havia inclusive tentado a matar.

Ouvi-o com atenção. Então perguntei: Tem mais gente envolvida!!!!

E ele me falou de Olavo, pois tinha interesse de se livrar de Taís ao descobrir que ela era amante de Ivan, seu irmão, que estavam envolvidos em crimes.

Balancei a cabeça e continuei ouvindo. Então ele desatou a falar como se estivesse no “Pau de Arara”:

Quem sabe tenha sido Marion, pois ela estava sendo chantageada por Taís. Marion havia lhe negado ajuda para fugir para Paris e Taís disse que revelaria a Urbano que a socialite lhe roubou o colar de esmeraldas. Mas quem sabe possa ter sido Lúcia, que ao descobrir que Antenor tem um envolvimento com Taís; Outro provável suspeito é Ivan, ainda com ciúmes por Taís ter transado com Olavo. Em outras hipóteses. Mas até mesmo Hermínia que prometeu a Zé Luíz, traumatizado com o seqüestro, que a Taís não faria mais nenhum mal a ele e nem a Paula. Não se pode descartar ainda a possibilidade de ter sido Eloísa decida em vingar-se de Taís pela morte de Evaldo.

Nesse momento fiquei perdido. Quem é Evaldo? Liguei para a minha tia que não atendeu. Liguei novamente e fui informado pela minha prima de que ela estava dando uma entrevista coletiva sobre a morte de Taís.

Eu me senti sozinho. Então olhei para Daniela e não me senti mais tão sozinho. Quando vi Daniela me olhando com aqueles belos olhos eu senti .... Estou pronto. Vou pegar. Deixa comigo que eu estou dentro e sou durão. Vou resolver esse mistério.

O Autor continuou: Pode ser Daniel, que queria colocar Taís na cadeia. Lembre-se que Daniel acha que é o único jeito que ele conseguiria ter paz com sua mulher Paula. E mesmo Cássio é um suspeito, pouco provável é verdade, mas ele e Taís tiveram um caso mal resolvido no início da novela.

Tentei ligar para a minha tia novamente e ela ainda estava na coletiva de imprensa.

O Autor continuou a falar: E Belisário? Ele não havia se conformado com o fato de ter sido enganado por Taís. E Ana Luísa? Sensibilizada com o desespero de Paula e Daniel.

E então falou a frase que esclareceu tudo: Pode ter sido Antenor. Ele decide se livrar de Taís. Lembra que ela o chantageava para não revelar que o empresário havia lhe oferecido dinheiro para separar Daniel e Paula.

Lembrei-me dos sopapos que havia levado dos seguranças quando abordei Antenor. Lembrei dos momentos peludos que passei no hospital por causa daquele tal de Toni Ramos. Eu não voltaria para os Estúdios de jeito nenhum.

Neste momento saquei de minha pistola, que depois de três dias na praia com Daniela já não era mais tudo isso, e dei-lhe voz de prisão.

Quem matou Taís foi você!!!!! E se não foi você sozinho, você mandou matar!!!!

O senhor não era o autor? Não poderia ter evitado? De onde saiu a idéia do personagem de matar a Taís? Foi da sua cabeça. Logo, foi o senhor, ou é Autor, ou é partícipe, ou é co-autor.

Coloquei as algemas nele e encerrei o caso. Portanto, não adianta assistir a novela das oito que passa às 21 horas, pois o Autor esta preso, e as algemas não lhe permitem escrever o final da história.

Caso resolvido.

Despedi-me de Daniela e voltei a Curitiba.

Dia 26 de Setembro de 2007

10:00 – Resolvi escrever este texto lembrando com algumas conclusões básicas.

A) Desde Salomão Raiala, passando pela clássica Odete Reutman, e chegando mesmo a Taís, quem mata o vilão sempre é o Autor.
B) Novelas da Globo são mesmo todas iguais.
C) Neste país tão carente de VERDADES, a “verdade” só aparece nos últimos capítulos das novelas, e sempre com o padrão Globo. Imaginem que na Globo, os culpados vão para a Cadeia. Será que isso é para saciar o desejo de justiça do povo?
D) Tem muita gente de verdade morrendo, sem que a Polícia, com expediente em algumas delegacias das dez às onze horas, e depois das quinze as dezessete, descubra quem foi.
E) Se o povo brasileiro gosta de novela, que ao menos preste mais atenção ao drama que esta vivendo.

O ARCANJO (Samuel Rangel)

Em face da minha atuação perante o Tribunal do Júri durante mais de uma década, tive contato com a forma policial de gerir seus inquéritos, algumas técnicas de investigação, alguns conhecimentos técnicos de Medicina Legal, Psicologia Forense, Criminologia, Vitimologia e Perineocroscopia. Então resolvi começar a trabalhar neste livro.

Segue o início:
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O Arcanjo (de Samuel Rangel)

Capítulo I – O CRIMINOSO

Eu na conseguia dormir. Depois da discussão que tive com Ana eu fumava um cigarro após o outro, e o sono cada vez mais distante. Estava tão nervoso que sentia minha respiração irregular. Parecia estar sofrendo uma crise de taquicardia. Há muito tempo meu casamento não estava bem, e nos últimos tempos eu havia visto as coisas se agravarem cada vez mais. Cada solução tentada acabava por provocar uma crise agravada. Já há algum tempo eu havia perdido todo o interesse pela minha mulher, quem sabe até por não ver qualquer libido em seu comportamento. Nossos dois filhos eram o grande motivo de minha preocupação e de minha insistência em um casamento visivelmente falido.

Nos dois últimos meses eu vinha enfrentando sérios problemas profissionais. Havia se instaurado uma guerra entre gangues e o IML recebia cerca de quatro corpos por dia. Eram vítimas de homicídios bárbaros. Mutilações e torturas eram as marcas comuns nos corpos que chegavam a mim para fazer a necropsia. Cada cessão chegava a durar cinco horas, diante dos incontáveis ferimentos e da difícil detecção da causa mortis.

Para aumentar meus problemas, a desestruturação do departamento de perineocroscopia, que fazia os exames de local de morte, havia incumbido os médicos de legistas do trabalho de campo. Meu trabalho que antes se resumia a uma sala fria e instrumentos cirúrgicos que desvendavam coisas sobre a morte, agora dividia-se também com o trabalho de campo.

Quando passei a ter contato com o local de morte, a situação se agravou muito, e fui acometido por uma depressão profunda. Era bem mais tranqüilo trabalhar com o corpo frio e já lavado de todo o sangue, mas comparecer ao local do homicídio, era o triste testemunho da falência humana. A constatação mais dramática do sofrimento de um ser humano e seu calvário.

Eu me tornara então o testemunho vivo do caos. Era acometido por pensamentos ruins e pesadelos constantes. Já há algum tempo parecia ter medo de dormir, pois não raramente, sonhava com os corpos desmantelados e a imagem terrível de ver neles o semblante de parentes meus. Nem o álcool nem os remédios que enfeitavam a cabeceira da minha cama eram capazes de me proporcionar algum descanso. Minha esposa parecia estar tão perto de tudo e não percebia nada. Meus filhos já não buscavam meu colo e amigos e parentes achavam que eu havia ficado louco.

A única pessoa com quem eu conseguia conversar e parecia realmente me entender era Vera. Uma residente de medicina que há seis meses fazia estágio no Instituto Médico legal, e diante das alterações do quadro, também passara a fazer exame de locais de morte comigo. Ambos parecíamos entender-se mutuamente, pois só nós vivíamos os nosso drama.

Eram quase três horas da manhã, quando o telefone tocou, e Vera me informa que há mais uma morte, desta vez, na favela do Parolim. De forma mórbida e sem qualquer constrangimento vesti minhas calças sem sequer lavar o rosto. Despenteado e com um cigarro já aceso entrei no meu carro rumando para o local. Chegando lá, a Polícia Militar me entrega uma Ficha de Atendimento a Ocorrência sem qualquer testemunha, sem qualquer esclarecimento. Para complicar mais ainda as coisas, o local não fora isolado. Ainda tive a oportunidade de ver um jovem arrancando o par de sapatos do cadáver e sair se embrenhando pelas vielas da favela.

Aproximando-me do corpo, levantei os jornais, e para meu espanto, não havia uma gota de sangue sequer. Revirei o corpo e não encontrei qualquer ferimento. Examinei superficialmente o couro cabeludo e não havia qualquer sinal de agressão. Vera chamou a atenção para uma marca de óleo na testa da vítima, em forma de cruz, parecendo ser uma unção. Pedi aos policiais que coletassem tudo ao redor do corpo e encaminhassem ao IML, pois não parecia ser homicídio. Apesar de tratar-se de um indivíduo de boa compleição física, parecendo gozar de boa saúde, como não havia sinal de violência tudo indicava morte natural. Eu faria os levantamentos necessários na necropsia.

Vera então pediu que eu a deixasse em casa. No caminho, conversamos sobre o caso, e diante de meu abatimento e da forma desligada que eu dirigia, ela perguntou-me se tudo estava bem. Diante da intimidade que nosso sofrimento nos proporcionou, passei a contar a ela sobre meus problemas. Chegando em seu apartamento, ela me convidou a subir. Destampamos a velha garrafa de Chivas e continuamos nosso lamento. Ela me revelou estar ficando deprimida diante da situação e durante longas horas conversamos.

Apenas me recordo que acordei no sofá de sua sala, e já passavam das três horas da tarde. Eu finalmente havia conseguido dormir. Vera já havia saído, tomando o cuidado de deixar-me uma garrafa de café e alguns pães sobre a mesa. Eu havia acordado disposto e me sentia melhor. Olhando em meu celular não havia registro de qualquer chamada. Resolvi então buscar meus filhos na escola. Fomos ao parque e conversamos muito. Eu tive ali os melhores momentos dos últimos tempos, pois parecia que eu estava os reconquistando. Na verdade, há muito tempo eles não viam seu pai descansado, e naquela tarde eu estava lhes dando o carinho que sempre senti. Ao final da tarde voltamos para a casa. Ana não falou comigo e eu permaneci com meus filhos. Assistimos a televisão e jogamos videogame. Eu me sentia extremamente bem, e após coloca-los para dormir, procurei conversar com Ana. Ela passou a chorar e eu lhe dei alento. Sem conseguir falar nada a puxei para o meu ombro, e ali, ainda sobre as cobertas ela dormiu. Durante um bom tempo passei admirando Ana, e perguntando-me como nosso casamento havia se transformado naquela crise sem volta.

Como era de costume nova ligação rompeu o silêncio da madrugada antes mesmo que eu pudesse dormir. Era Vera, e ela me chamou a ir até o IML. Era sobre o corpo da favela. Não havia nexo causal na morte daquela vítima, e a família já causava tumulto em frente ao IML pedindo a liberação do corpo. Daquela vez eu neguei o pedido de Vera e disse estar mais preocupado com meu casamento. Rebelando-me de forma descontrolada passei a gritar ao telefone. Eu pedia minha vida de volta. Perguntava a Vera até onde iriam me explorar. Eu havia esquecido que Vera também sofria com a situação. Meus gritos foram interrompidos quando Vera, chamando-me carinhosamente de professor, disse que tinha certeza tratar-se de homicídio.

Então fui até o IML. Na sala de necropsia, vi Vera com toda sua beleza roubada. Pálida, ela remexia as entranhas do corpo da vítima tentando descobrir a solução de tão grande mistério. Fui recebido por ela com certa apatia, e compreendi que assim foi diante de meu desabafo no telefone. Passando levemente a mão em sua cabeça lhe pedi desculpas, e como resposta, vi um choro compulsivo.

- Professor, Desde as três horas da tarde eu reviro este corpo e não encontro nada. Será que além deste serviço ser uma merda eu ainda sou incompetente?

Causa natural. Respondi com ares de mestre e tentando dar um descanso a pobre moça.

- Não Professor. Suicídio, Sem duvida alguma. Veja a carta que foi encontrada sobre as roupas da vítima.

Ela exibiu-me então um pedaço de papel de linho que trazia escrito em letras desenhadas: “Confesso a Deus”. Abaixo, em letra cursiva uma série de relatos de crimes que a vítima havia cometido. Roubos, homicídios e estupros. Ao final, o texto bíblico da confissão e o pedido de perdão.

Realmente o caso era atípico. Tudo parecia indicar um suicídio, porém, na havia sinais físicos de tal prática. Engajei-me nos trabalhos com afinco, e nenhuma resposta parecia lógica. Analisando o aparelho respiratório o sistema cardiovascular do corpo, cheguei a conclusão de que a morte havia sido provocada por uma parada cardiorespiratória súbita. Era definitivamente o que eu precisava. Um caso único em toda a história da medicina legal. Como alguém poderia cometer suicídio desta forma? Conversando com a família da vítima, em frente ao IML, mostrei a eles a carta de confissão. De forma surpreendente eles confirmaram a caligrafia de Micke. Era o nome da vítima. Eles também afirmaram ter conhecimento de que seu filho havia se embrenhado pelo mundo do crime, todavia, há duas semanas encontrava-se deprimido e amedrontado.

Essas informações causaram ainda maior interesse meu, e conversando com a família eles permitiram que eu tivesse acesso a sua casa e aos pertences da vítima. Voltando a favela em companhia de Vera, entramos em um pequeno barraco coberto com folhas e lona. Era uma família muito humilde. Apontando para os fundos do terreno, eles mostraram-me outro pequeno barraco e informaram que era lá que Micke morava. Entrando no barraco, tivemos uma surpresa muito grande. Uma enorme televisão e um DVD encostados na parede. No chão um pequeno cobertor. Vários aparelhos de som e vídeo. Realmente Micke havia tirado bons frutos de seus crimes.

Vera remexia naquele material e notou uma carta deixando dados para que fossem encontrados os donos dos objetos. Anotamos os indicativos do que parecia ser um endereço que se encontrava na carta e nos dirigimos para lá. Era uma casa grande e de arquitetura impecável. Conversando com os proprietários narramos a situação e fomos informados de que haviam sido sim vítimas de roubo. Informando as características físicas de Micke, eles informaram serem compatíveis com a do assaltante que meses antes havia roubado sua televisão.

O caso então tomou um rumo misterioso. Micke havia cometido suicídio, deixando uma carta de confissão e arrependimento, tomando os cuidados para que os produtos de seus crimes fossem restituídos aos proprietários.

Vera não se conformava que após tanto tempo de estudo ainda ficasse sem resposta a forma com que Micke havia se matado. Misturando a comemoração de ter algo especial nas mãos e a tristeza de não poder desvendar o caso, fomos até o Braz Hotel, sentar na sacada e tomar nosso velho e bom chope. Lá conversamos novamente sobre o caso que parecia nos absorver integralmente. Depois de horas de conversa, quando o chope já nos havia provocado gargalhadas involuntárias, Vera perguntou-me sobre minha situação com Ana. De súbito, percebendo que há mais de 30 horas eu havia saído de casa sem dizer nada, e que meu telefone havia ficado carregando na cabeceira da cama, deixando o dinheiro da despesa sobre a mesa eu sai sem dar-lhe qualquer explicação, recebendo como resposta de Vera um sorriso e um aceno com a mão.

Chegando em casa, Ana já estava dormindo. Repetindo o gesto com o qual eu fizera ela dormir duas noites antes, ela despertou. Olhando-me com muita tristeza disse não haver mais condições. Tentei explicar a ela tudo o que eu havia pensado e fui interrompido pelos seus gritos de desespero. Eu ainda tentava acalma-la com minhas palavras, mas seu estado era desesperador. Agredindo-me ela me colocou para fora do quarto. As crianças acordaram. Fiquei perdido sem saber o que fazer. Ela desceu a escada e mandou que eu saísse, pois tudo havia acabado.

Perdido, voltei ao hotel e Vera não estava mais lá. Liguei para Vera que compreendeu a situação e resolveu emprestar-me o sofá novamente. Chegando lá, sobre a mesa de centro, a garrafa de Scotch Whisky, Chivas, o meu preferido e um copo com gelo. Vera já estava dormindo. Fiquei ali sentado inerte. Horas depois Vera veio até a sala, e abraçando-me como mãe que abraça seu filho deu-me o colo que eu precisava. Companheira e compreensiva ela ficou ali em silêncio, e mais uma vez eu dormi. Vera parecia ter algo muito especial com o qual me fazia relaxar.

Acordei determinado a concertar a minha vida, e centrando-me principalmente em meu trabalho fui direto ao IML. Lá fizemos vários exames antes de liberar o corpo de Micke. Tudo concluía por uma Morte por Inibição. Trata-se de uma morte causada por um choque que atinge o nervo vago, o qual domina os movimentos involuntários de respiração e batimento cardíaco. O exemplo acadêmico é aquele da bolada no estômago. O caso mais famoso é o trote que acadêmicos do curso de Medicina davam em seus calouros em uma faculdade na Inglaterra . Com o terrorismo típico destes trotes, os calouros eram levados a salas escuras, e lhes era dito que teriam a cabeça cortada. Com uma toalha molhada um golpe era dado na parte posterior do pescoço dos calouros. Ao final do trote, quando se acenderam as luzes, um deles havia falecido – morte por inibição.

Se assim era, e respeitando a necrologia como ciência justificada, como Micke havia provocado inibição e um suicídio bem sucedido?