Em face da minha atuação perante o Tribunal do Júri durante mais de uma década, tive contato com a forma policial de gerir seus inquéritos, algumas técnicas de investigação, alguns conhecimentos técnicos de Medicina Legal, Psicologia Forense, Criminologia, Vitimologia e Perineocroscopia. Então resolvi começar a trabalhar neste livro.
Segue o início:
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O Arcanjo (de Samuel Rangel)
Capítulo I – O CRIMINOSO
Eu na conseguia dormir. Depois da discussão que tive com Ana eu fumava um cigarro após o outro, e o sono cada vez mais distante. Estava tão nervoso que sentia minha respiração irregular. Parecia estar sofrendo uma crise de taquicardia. Há muito tempo meu casamento não estava bem, e nos últimos tempos eu havia visto as coisas se agravarem cada vez mais. Cada solução tentada acabava por provocar uma crise agravada. Já há algum tempo eu havia perdido todo o interesse pela minha mulher, quem sabe até por não ver qualquer libido em seu comportamento. Nossos dois filhos eram o grande motivo de minha preocupação e de minha insistência em um casamento visivelmente falido.
Nos dois últimos meses eu vinha enfrentando sérios problemas profissionais. Havia se instaurado uma guerra entre gangues e o IML recebia cerca de quatro corpos por dia. Eram vítimas de homicídios bárbaros. Mutilações e torturas eram as marcas comuns nos corpos que chegavam a mim para fazer a necropsia. Cada cessão chegava a durar cinco horas, diante dos incontáveis ferimentos e da difícil detecção da causa mortis.
Para aumentar meus problemas, a desestruturação do departamento de perineocroscopia, que fazia os exames de local de morte, havia incumbido os médicos de legistas do trabalho de campo. Meu trabalho que antes se resumia a uma sala fria e instrumentos cirúrgicos que desvendavam coisas sobre a morte, agora dividia-se também com o trabalho de campo.
Quando passei a ter contato com o local de morte, a situação se agravou muito, e fui acometido por uma depressão profunda. Era bem mais tranqüilo trabalhar com o corpo frio e já lavado de todo o sangue, mas comparecer ao local do homicídio, era o triste testemunho da falência humana. A constatação mais dramática do sofrimento de um ser humano e seu calvário.
Eu me tornara então o testemunho vivo do caos. Era acometido por pensamentos ruins e pesadelos constantes. Já há algum tempo parecia ter medo de dormir, pois não raramente, sonhava com os corpos desmantelados e a imagem terrível de ver neles o semblante de parentes meus. Nem o álcool nem os remédios que enfeitavam a cabeceira da minha cama eram capazes de me proporcionar algum descanso. Minha esposa parecia estar tão perto de tudo e não percebia nada. Meus filhos já não buscavam meu colo e amigos e parentes achavam que eu havia ficado louco.
A única pessoa com quem eu conseguia conversar e parecia realmente me entender era Vera. Uma residente de medicina que há seis meses fazia estágio no Instituto Médico legal, e diante das alterações do quadro, também passara a fazer exame de locais de morte comigo. Ambos parecíamos entender-se mutuamente, pois só nós vivíamos os nosso drama.
Eram quase três horas da manhã, quando o telefone tocou, e Vera me informa que há mais uma morte, desta vez, na favela do Parolim. De forma mórbida e sem qualquer constrangimento vesti minhas calças sem sequer lavar o rosto. Despenteado e com um cigarro já aceso entrei no meu carro rumando para o local. Chegando lá, a Polícia Militar me entrega uma Ficha de Atendimento a Ocorrência sem qualquer testemunha, sem qualquer esclarecimento. Para complicar mais ainda as coisas, o local não fora isolado. Ainda tive a oportunidade de ver um jovem arrancando o par de sapatos do cadáver e sair se embrenhando pelas vielas da favela.
Aproximando-me do corpo, levantei os jornais, e para meu espanto, não havia uma gota de sangue sequer. Revirei o corpo e não encontrei qualquer ferimento. Examinei superficialmente o couro cabeludo e não havia qualquer sinal de agressão. Vera chamou a atenção para uma marca de óleo na testa da vítima, em forma de cruz, parecendo ser uma unção. Pedi aos policiais que coletassem tudo ao redor do corpo e encaminhassem ao IML, pois não parecia ser homicídio. Apesar de tratar-se de um indivíduo de boa compleição física, parecendo gozar de boa saúde, como não havia sinal de violência tudo indicava morte natural. Eu faria os levantamentos necessários na necropsia.
Vera então pediu que eu a deixasse em casa. No caminho, conversamos sobre o caso, e diante de meu abatimento e da forma desligada que eu dirigia, ela perguntou-me se tudo estava bem. Diante da intimidade que nosso sofrimento nos proporcionou, passei a contar a ela sobre meus problemas. Chegando em seu apartamento, ela me convidou a subir. Destampamos a velha garrafa de Chivas e continuamos nosso lamento. Ela me revelou estar ficando deprimida diante da situação e durante longas horas conversamos.
Apenas me recordo que acordei no sofá de sua sala, e já passavam das três horas da tarde. Eu finalmente havia conseguido dormir. Vera já havia saído, tomando o cuidado de deixar-me uma garrafa de café e alguns pães sobre a mesa. Eu havia acordado disposto e me sentia melhor. Olhando em meu celular não havia registro de qualquer chamada. Resolvi então buscar meus filhos na escola. Fomos ao parque e conversamos muito. Eu tive ali os melhores momentos dos últimos tempos, pois parecia que eu estava os reconquistando. Na verdade, há muito tempo eles não viam seu pai descansado, e naquela tarde eu estava lhes dando o carinho que sempre senti. Ao final da tarde voltamos para a casa. Ana não falou comigo e eu permaneci com meus filhos. Assistimos a televisão e jogamos videogame. Eu me sentia extremamente bem, e após coloca-los para dormir, procurei conversar com Ana. Ela passou a chorar e eu lhe dei alento. Sem conseguir falar nada a puxei para o meu ombro, e ali, ainda sobre as cobertas ela dormiu. Durante um bom tempo passei admirando Ana, e perguntando-me como nosso casamento havia se transformado naquela crise sem volta.
Como era de costume nova ligação rompeu o silêncio da madrugada antes mesmo que eu pudesse dormir. Era Vera, e ela me chamou a ir até o IML. Era sobre o corpo da favela. Não havia nexo causal na morte daquela vítima, e a família já causava tumulto em frente ao IML pedindo a liberação do corpo. Daquela vez eu neguei o pedido de Vera e disse estar mais preocupado com meu casamento. Rebelando-me de forma descontrolada passei a gritar ao telefone. Eu pedia minha vida de volta. Perguntava a Vera até onde iriam me explorar. Eu havia esquecido que Vera também sofria com a situação. Meus gritos foram interrompidos quando Vera, chamando-me carinhosamente de professor, disse que tinha certeza tratar-se de homicídio.
Então fui até o IML. Na sala de necropsia, vi Vera com toda sua beleza roubada. Pálida, ela remexia as entranhas do corpo da vítima tentando descobrir a solução de tão grande mistério. Fui recebido por ela com certa apatia, e compreendi que assim foi diante de meu desabafo no telefone. Passando levemente a mão em sua cabeça lhe pedi desculpas, e como resposta, vi um choro compulsivo.
- Professor, Desde as três horas da tarde eu reviro este corpo e não encontro nada. Será que além deste serviço ser uma merda eu ainda sou incompetente?
Causa natural. Respondi com ares de mestre e tentando dar um descanso a pobre moça.
- Não Professor. Suicídio, Sem duvida alguma. Veja a carta que foi encontrada sobre as roupas da vítima.
Ela exibiu-me então um pedaço de papel de linho que trazia escrito em letras desenhadas: “Confesso a Deus”. Abaixo, em letra cursiva uma série de relatos de crimes que a vítima havia cometido. Roubos, homicídios e estupros. Ao final, o texto bíblico da confissão e o pedido de perdão.
Realmente o caso era atípico. Tudo parecia indicar um suicídio, porém, na havia sinais físicos de tal prática. Engajei-me nos trabalhos com afinco, e nenhuma resposta parecia lógica. Analisando o aparelho respiratório o sistema cardiovascular do corpo, cheguei a conclusão de que a morte havia sido provocada por uma parada cardiorespiratória súbita. Era definitivamente o que eu precisava. Um caso único em toda a história da medicina legal. Como alguém poderia cometer suicídio desta forma? Conversando com a família da vítima, em frente ao IML, mostrei a eles a carta de confissão. De forma surpreendente eles confirmaram a caligrafia de Micke. Era o nome da vítima. Eles também afirmaram ter conhecimento de que seu filho havia se embrenhado pelo mundo do crime, todavia, há duas semanas encontrava-se deprimido e amedrontado.
Essas informações causaram ainda maior interesse meu, e conversando com a família eles permitiram que eu tivesse acesso a sua casa e aos pertences da vítima. Voltando a favela em companhia de Vera, entramos em um pequeno barraco coberto com folhas e lona. Era uma família muito humilde. Apontando para os fundos do terreno, eles mostraram-me outro pequeno barraco e informaram que era lá que Micke morava. Entrando no barraco, tivemos uma surpresa muito grande. Uma enorme televisão e um DVD encostados na parede. No chão um pequeno cobertor. Vários aparelhos de som e vídeo. Realmente Micke havia tirado bons frutos de seus crimes.
Vera remexia naquele material e notou uma carta deixando dados para que fossem encontrados os donos dos objetos. Anotamos os indicativos do que parecia ser um endereço que se encontrava na carta e nos dirigimos para lá. Era uma casa grande e de arquitetura impecável. Conversando com os proprietários narramos a situação e fomos informados de que haviam sido sim vítimas de roubo. Informando as características físicas de Micke, eles informaram serem compatíveis com a do assaltante que meses antes havia roubado sua televisão.
O caso então tomou um rumo misterioso. Micke havia cometido suicídio, deixando uma carta de confissão e arrependimento, tomando os cuidados para que os produtos de seus crimes fossem restituídos aos proprietários.
Vera não se conformava que após tanto tempo de estudo ainda ficasse sem resposta a forma com que Micke havia se matado. Misturando a comemoração de ter algo especial nas mãos e a tristeza de não poder desvendar o caso, fomos até o Braz Hotel, sentar na sacada e tomar nosso velho e bom chope. Lá conversamos novamente sobre o caso que parecia nos absorver integralmente. Depois de horas de conversa, quando o chope já nos havia provocado gargalhadas involuntárias, Vera perguntou-me sobre minha situação com Ana. De súbito, percebendo que há mais de 30 horas eu havia saído de casa sem dizer nada, e que meu telefone havia ficado carregando na cabeceira da cama, deixando o dinheiro da despesa sobre a mesa eu sai sem dar-lhe qualquer explicação, recebendo como resposta de Vera um sorriso e um aceno com a mão.
Chegando em casa, Ana já estava dormindo. Repetindo o gesto com o qual eu fizera ela dormir duas noites antes, ela despertou. Olhando-me com muita tristeza disse não haver mais condições. Tentei explicar a ela tudo o que eu havia pensado e fui interrompido pelos seus gritos de desespero. Eu ainda tentava acalma-la com minhas palavras, mas seu estado era desesperador. Agredindo-me ela me colocou para fora do quarto. As crianças acordaram. Fiquei perdido sem saber o que fazer. Ela desceu a escada e mandou que eu saísse, pois tudo havia acabado.
Perdido, voltei ao hotel e Vera não estava mais lá. Liguei para Vera que compreendeu a situação e resolveu emprestar-me o sofá novamente. Chegando lá, sobre a mesa de centro, a garrafa de Scotch Whisky, Chivas, o meu preferido e um copo com gelo. Vera já estava dormindo. Fiquei ali sentado inerte. Horas depois Vera veio até a sala, e abraçando-me como mãe que abraça seu filho deu-me o colo que eu precisava. Companheira e compreensiva ela ficou ali em silêncio, e mais uma vez eu dormi. Vera parecia ter algo muito especial com o qual me fazia relaxar.
Acordei determinado a concertar a minha vida, e centrando-me principalmente em meu trabalho fui direto ao IML. Lá fizemos vários exames antes de liberar o corpo de Micke. Tudo concluía por uma Morte por Inibição. Trata-se de uma morte causada por um choque que atinge o nervo vago, o qual domina os movimentos involuntários de respiração e batimento cardíaco. O exemplo acadêmico é aquele da bolada no estômago. O caso mais famoso é o trote que acadêmicos do curso de Medicina davam em seus calouros em uma faculdade na Inglaterra . Com o terrorismo típico destes trotes, os calouros eram levados a salas escuras, e lhes era dito que teriam a cabeça cortada. Com uma toalha molhada um golpe era dado na parte posterior do pescoço dos calouros. Ao final do trote, quando se acenderam as luzes, um deles havia falecido – morte por inibição.
Se assim era, e respeitando a necrologia como ciência justificada, como Micke havia provocado inibição e um suicídio bem sucedido?
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Um comentário:
Oh Samuca, quero saber o fim da história.....
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