segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

O TEMPO QUE NOS REVELA (Samuel Rangel)



O Tempo que nos leva.

Da inocência de nossa infância, somos conduzidos pelo tempo até o brilho de nossa idade. E até parece que o tempo não tem alma, pois nos arranca as forças, nos rouba o fôlego. Faz com que nossa cabeça se curve aos fatos mais insólitos. Faz com que nossas pernas percam a rapidez na condução dos dias. Faz com que nossas palavras se percam em meio ao valor que nos dão. Esse tempo, é para muitos um carrasco implacável que nos executa lentamente enquanto a hora se esvai por entre os nossos dedos.

Mas acho que não é assim. Quem sabe o tempo tenha sua própria ciência, e dela faça uso no sentido de nos conduzir a um ser melhor. Do egocentrismo de nossa infância ficamos órfãos já na adolescência, e de forma pueril e irritantemente romântica na adolescência buscamos nossa felicidade na garota mais bonita, no corpo mais escultural, no sucesso refletido nas retinas atentas que nos julgam a cada instante. E tanto quanto nos judiam as manhas da infância, a tristeza de amores não correspondidos ou de relacionamentos rompidos no estapeiam o rosto sem qualquer parcimônia.

E a adolescência então vai-se embora quando nos embrenhamos nos caminhos do instinto, e o tempo nos dá alguns encantos para que possamos nos relacionar com alguém. Porém, como os encantos são apenas alguns, não temos o condão de entrar na alma das pessoas ou de permanecer muito tempo lá.

E o tempo nos faz cansar de tantas idas e vindas. Ele silenciosamente nos propõe um lugar, um alguém, uma forma de viver os dias. Somos então parte de algo, e com o tempo, passamos a dormir na metade de uma cama, ter a metade de um guarda-roupa, ou mesmo dividir até as gavetas da pia do banheiro.

Mas o tempo nos cobra então o que não fizemos, nos cobra até aquilo que estamos deixando de fazer, e nos mostra que nossos olhos precisam aprender a julgar melhor as pessoas e a si próprio, pois o material de que somos feitos se deteriora. O tempo nos mostra ainda que não conseguimos ainda deixar totalmente de lado a adolescência, e nos cobra uma atitude. E aquilo que parecia ser perpétuo, acaba se demonstrando como apenas um passo. Uma passagem que nos remete ao escuro, a solidão, e ao desencontro.

Dessa vez achamos que o tempo nos quer mal, e chegamos a questionar suas intenções. Por qual razão nos flagela tanto? Por que não demonstra a mínima compaixão? Permita-nos ao menos entender tanto sofrimento. E nossa cabeça curva como se fosse pela última vez.

Mas é no escuro que nos enxergamos melhor, e na solidão que ouvimos mais nossos anseios. É neste aparente sofrimento que encontramos o necessários tratamento.

Percebemos então que o tempo arranca nossas forças e nosso fôlego, mas é para que passemos a ter algum respeito que nos faltou em outro momento. E também faz com que nossa cabeça se curve aos fatos mais insólitos, para que com o respeito devido, passemos a entender que não somos melhores ou maiores que ninguém. O tempo faz com que nossas pernas percam a rapidez na condução dos dias para que paremos de fugir de tudo e de todos, para que enfrentemos nossas lutas. E faz com que nossas palavras se percam em meio ao valor que nos dão, para que aprendamos a ouvir mais e julgar de acordo com o que somos e conhecemos.

Então o tempo e a vida, segredos de nossa infância e mistérios de nossa velhice estão lá, lado a lado, de mãos unidas em nossa existência, contemplando-nos como o pai que admira o filho com a bola nos pés.

E então, quando nossa cabeça pratear nossa existência, entenderemos naquela criança afoita correndo atrás da bola, todo o carinho que o tempo nos dedica.

Aos nossos dez anos, corremos muito atrás da bola, e tantas e tantas vezes nem a alcançamos.

Em nossa adolescência, alcançamos a bola e com ela corremos com toda nossa rapidez, ainda que muitas vezes não saibamos exatamente para onde vamos.

E o tempo nos ensina então, quando adultos, que a bola deve correr por nós, e que nós, os preferidos do tempo, é que temos toda a liberdade de fazer a bola correr no sentido que bem entendermos. Temos então o poder de decidir as coisas, e delas tirar as lições e proveitos como verdadeiras bênçãos.

E haverá então o último tempo, aquele que não se revela, mas que ao chegar, nos pega pela mão, agora vestido de findo e nos convocando ao abandono, cerra nossos olhos e nos convida a partir. Neste momento, ele nos mostra que, tanto quanto nós, o tempo pode recomeçar, inclusive para nós, inclusive em nós, inclusive por nós.

O tempo é que faz da vida a verdadeira benção.

ESCOLHAS (Samuel Rangel)

Sinto-me um tolo vez por outra, ao me perceber tentando dividir uma garrafa quase vazia em dois copos. Lá estou eu novamente deitando o gargalo quase seco sobre um copo sedento, mas infeliz no seu desiderato. Penso que a alquimia poderia trazer-me pela mão e combinar algum hidrogênio descuidado com as moléculas de oxigênio que sonho serem minhas. Mas de nada adianta. Teremos três certezas apenas: os dois copos quase vazios e a sede que os atormenta.

E não é diferente com a vida. Tentando dividir as palavras entre o advogado e um escritor sem registro nem permissão. Em outro momento não sei se componho alguma melodia que revele minha alma, ou se rabisco em algum papel o desenho que contaria como ela chegou aqui.

Há ainda a divisão entre o pai e o filho. Não tenho certeza se dedico o meu primeiro abraço ao meu pai, ou se dedico ao meu filho. Mas como nenhum amor é eminentemente felicidade, e não há uma só partida que não revele novos campos, aprendo a boa lição da garrafa vazia. Por mais que tentemos inundar a tudo, estaremos limitados pela nossa capacidade.

Por mais que eu almeje desesperadamente ser um grande homem, jamais serei dois.
Por mais que eu deseje todas as artes, jamais comporei a música virtuosa enquanto minhas mãos escrevem cartas de sentido. E mesmo dentro de cada compartimento desta imensidão chamada vida, não será diferente, pois ao tentar versos, perderei o poder da crônica, e se crônica tentar buscar, serei obrigado a esquecer das rimas.

Mas tanto quanto as lições que julguei tolas no ginasial, estas também são de máxima importância.

Tanto quanto a criança dos anos setenta, que escolhia o pássaro mais colorido no aviário, deixando de escolher o de melhor canto, continuo a cada escolha abdicando de algo não menos importante.

Para cada sim haverá mais de um não.

Para um querer, uma infinidade de rejeições.

Para passear pela teclas do meu piano, terei que silenciar as cordas do meu violão.

Para um beijo, alguns segundos em que deixarei de respirar.

Para cada chegada uma partida.

Para cada passo, um pé deverá ficar atrás.

Para cada nova palavra, uma outra se perdeu no tempo.

Para cada encontro um desencontro.

Para cada casaco novo, um outro se tornou velho.


Para cada eu te amo, haverá de se dizer um eu te esqueço.

E enquanto este ano agoniza, um outro prepara seu primeiro grito.

Assim é.

E na Comédia Del Arte encenada pela vida, no desempenho de nosso papel, para termos a profundidade dos Velhos, teremos que deixar a graça dos Zanis.

Então que seja.

Que venha tudo que há de novo, pois ainda que não possa tocar o passado, eu sempre poderei reverenciá-lo em minhas lembranças.

Que venha o desconhecido, como forma de dar seqüência aos passos que me trouxeram até aqui.

Que venham alegrias e tristezas, chegadas e partidas. Sim. Que venham essas escultoras caprichosas do tempo, que com maior ou menor delicadeza, vão moldando em minha alma o rosto de minha história.

Aceitarei os golpes doloridos da realidade quando o formão afiado arrancar pedaços desta minha alma, mas sei que logo após, ou quem sabe mais tarde, quando o tempo for exato, essas artistas virtuosas haverão de manipular algo com a suavidade do algodão para tornar lisa a sua obra.

Que abram-se as cortinas desses próximos dias, meses e anos, e que a grande Direção do Universo nos permita ter uma bela história para contar ao público.