quarta-feira, 19 de setembro de 2007

ESTAMOS DOENTES (Samuel Rangel)

Em função da advocacia, deixo meu carro no estacionamento próximo ao fórum há pelo menos dez anos. Em função disso, fiz amizade com os funcionários e com os advogados, juízes e promotores que deixam o carro no mesmo lugar.


Ontem, convidando a tomar ciência de um despacho, fui ao fórum. Ao entrar no cartório, fui recebido por funcionários cansados, sem a menor boa vontade. Atendido de forma ríspida, respondi com bom humor: Espero que vocês tenham uma tarde melhor a partir de agora. E após muito insistir nesse bom humor, acabei logrando êxito em fazer brotar um sorriso em alguns funcionários da Vara. Não foi fácil, mas consegui inclusive ser atendido com certa eficiência.

Após isso, aguardando o cliente no saguão do fórum o tempo foi passando. E passou rápido. Era dia de receber honorários, mas quando a data é para tal finalidade, os clientes não são tão rápidos quanto seus telefones pelas madrugadas da urgência. Então sai e fui ao estacionamento, fumar um cigarro enquanto esperava o cliente. E nada!!!! Mais um cigarro, e nada. E outro, outro ...

Repentinamente fui surpreendido com gritos e palavrões.

Pelo nível dos palavrões, julguei estar nas arquibancadas de um Campo de Futebol. Ainda estonteado pelos palavrões, tentei observar o que acontecia. Era uma discussão entre um advogado e uma funcionária do estacionamento.

Como é de meus princípios, tentei apaziguar os ânimos, mas não havia jeito. Naquele momento imaginei meu filho ali me perguntando o significado dos palavrões que caiam das bocas nervosas. Eu não conseguiria responder e acho que se desenhasse, eu faria meu filho pular toda sua infância em menos de dez rabiscos.

Então, outras pessoas começaram a intervir, e os palavrões foram se multiplicando, mais e mais. Chegou a um ponto tal, que para me sentir em um campo de futebol, bastaria organizar as camisas dos Ensandecidos e dos Filhos da Ira. O placar dos palavrões era digno de uma partida de Basquete. Ensandecidos 102, Filhos da Ira 103.

Então alguém chama a polícia. Opa, uma atitude inteligente. O policial chega com toda a calma do mundo (e depois dizem que a polícia é truculenta) e desvenda o mistério daquela batalha. O advogado pretendia pagar o estacionamento com uma nota de cinquenta Reais, ao passo que a menina do estacionamento não tinha troco. O policial então, ainda com a voz serena, disse a menina que se não tinha troco, deveria liberar o automóvel independentemente do pagamento.
Ela ficou ainda mais nervosa, e seu palavrões adora eram para o policial, que simplesmente virou as costas e saiu do local.

O advogado, com o carro liberado, sai gritando. A menina, sem receber os dois Reais, continuava gritando, e meu cliente nada.

Passei ainda mais um tempo por ali, e testemunhei um outro advogado passando os dados para a menina sobre o advogado que lhe havia ofendido. Nesse momento entendi que o mercado realmente anda mal para os advogados. Ali estava um angariando um causa de dois reais, que provavelmente permutaria por mensalidades no estacionamento.

Após muito tempo, quando eu já desistia de meu cliente, fui até meu carro para ir embora. Quando estava a caminho dele, vi que as gritarias recomeçavam. Quando olhei para trás, descobri que dessa vez era comigo: “ Por que vocês advogados são .... e vocês .... seu bando de ..... eu vou .....”

Eu não acreditei, mas rodando os olhos à minha volta, descobri que era sim comigo. Agora os funcionários do estacionamento despejavam a ira contra mim. Eu não respondi.

E fui até o rapaz que sempre me atendeu bem e perguntei o que estava acontecendo. Ele então me disse que não sabia. Perguntei aos outros funcionários qual o problema. A menina ensandecida, funcionária nova do estacionamento, disse que eu não era mensalista. Então eu ri. Ela ficou ainda mais nervosa.

Olhei para o rapaz e perguntei se eu não era mais mensalista. Então ele me disse que na segunda-feira houve uma reunião e eu não era mais mensalista. Pois bem, um contrato rompido unilateralmente e eu realmente estava em outro estacionamento, pois aquele não é mais o que me abrigou durante dez anos.

Uma das meninas grita: E se você aparecer aqui com essa merda novamente eu vou quebrar todos os vidros. Mais uma vez eu ri. Ela ficou ainda mais nervosa, e eu atônito. Ela veio em minha direção como se fosse me agredir. Como me foi ensinado pelo meu pai, não se levanta a mão para uma mulher.

Quando ela percebeu que apenas virei de costas para ela, continuou gritando os palavrões de campo.

E eu ali, tentando entender o que acontecia.

Vi quando a outra menina disse: Ele tentou defender aquele f.......

Então eu ri, olhei bem para ela, e perguntei: Escuta, pela paz, será que está todo mundo de TPM aqui?

Vi que algumas pessoas riram, mas as duas ensandecidas não. Simplesmente ficaram ainda mais bravas.

Então eu paguei novamente os R$ 2 que julgava ter pago na mensalidade, e resolvi ir embora.
Mas agora, aquele sorriso que tinha no rosto se desfez. Foi com tristeza que percebi que estamos doentes, pois o nível de estresse das pessoas é tão grande que pequenas coisas se tornam questões de polícia.

Quando pessoas de bem começam a agir assim, é momento de refletir.

Quando pessoas educadas começam a usar um linguajar que não lhe é próprio, é momento de refletir sobre o que esta acontecendo.

As pessoas se perdem em desilusões, se afundam em realizações fúteis, se afastam de seus apoios familiares, assumem cursos e concursos que lhe sugam toda a dedicação, enquanto os filhos são educados pela televisão.

Então a mulher percebe que o filho beija a tela da televisão quando uma suposta rainha aparece, ao passo que não beija a sua própria mãe há muito tempo.

O homem agora percebe que o herói de seu filho é o Homem Aranha, e não vê o menor vestígio de admiração nos olhos de seu filho.

A mãe não faz mais os bolinhos, e nem o pai sabe mais pescar. A mãe as vezes esta mais na babá e na cozinheira, enquanto o pai, sem substituto, deixa o filho, desde a tenra infância, tirar da vida suas próprias conclusões.

Estamos doentes, e precisamos nos tratar.

Se em meio suas tarefas diárias tiver ao menos um tempinho, pense nisso.

2 comentários:

Lili Marlene disse...

Concordo plenamente com vc. às vezes, parece que as pessoas estão mesmo alteradas e perdem o juízo e perdem o bom senso.
Tenho pena das crainças de hoje em dia, que não recebendo atenção e carinho dos pais acabam se perdendo na vida, pois não há ninguém para lhe segurar a mão e mostrar o caminho.
Bjo
Lili

Mi disse...

Triste demais isso...
Mas infelizmente é a realidade.
Cada dia que passa o povo está mais irritado.. tudo é motivo para explodir.. brigar.. falar coisas sem pensar...
E O PIOR DE TUDO É QUE ISSO TENDE A FICAR CADA VEZ PIOR..
Beijo Samuca.. e se cuide aí pelos estacionamentos da vida.. hihihi