quinta-feira, 19 de março de 2009

JUCA, AS PASSAGENS E O TROCO


Dia cinza, sem sabor, e de sapatos velhos com a barra desfeita da calça jeans arrastando no chão, Juca desfila rápido seu pânico pelo centro da cidade, na inútil tentativa de resolver os problemas típicos de um brasileiro, acumulados pela existência de pouco glamour e quase nenhuma dignidade. Contas, empréstimos em banco, e lá se vai Juca recebendo uma porção de sim e outra não.
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Ao pedir o empréstimo no Banestado, ouviu um sim: Sim, o senhor está com restrições cadastrais, e não podemos lhe conceder o empréstimo solicitado. Na imobiliária ouviu outro outro sim: Sim, você deverá desocupar o imóvel em dez dias, pois o proprietário pediu o imóvel. Mas para provar que a vida não é só feita de “sim”, ouviu não também: não tenho dinheiro para te emprestar, não posso te ajudar, e por último, não quero mais ficar contigo.
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Assim, após ouvir de sua namorada, quase noiva, que não gostaria de levar a vida do lado de alguém que não tinha estabilidade financeira e nenhuma perspectiva, Juca resolveu esticar as pernas em seu apartamento, e desistir daquele dia. De nada adianta nadar contra a correnteza, principalmente quando a correnteza está prestes a desembocar em uma cascata enorme. Ao fechar os olhos Juca até podia ver e sentir aquelas pedras pontudas no fundo da cachoeira imaginária.
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Triste, de cabeça baixa como jamais havia olhado para o chão, Juca desceu do elevador, dessa vez sem agradecer à ascensorista, e como se estivesse nu, foi para seu quase antigo apartamento (por uma questão de dez ou onze dias) carregando a vergonha do mundo, como se fosse filho de algum ditador campeão de bilheteria em algum crime contra a humanidade. Ao andar lento e pesado de vexames pelo corredor, sem erguer os olhos, foi com passos programados até a porta de seu cafofo, e para seu desespero, ali no chão, um monte de correspondências com envelopes conhecidos. Avisos de cartório, cartas de cobrança, comunicados de atraso e um envelope do tipo carnê.
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Juca percebeu que estava na beira da cascata, ouvindo o turbilhão voraz, e que o tombo seria bem dolorido desta vez, mas com a alma honesta, e cheio de vontade de pagar, bem mais que aqueles que deviam para ele, Juca abaixou-se com dignidade e como guerreiro Mongol , ferido ergueu os envelopes. Com a coragem de quem olha nos olhos de seu algoz , passou os envelopes um a um, e por não conhecer aqueles carnês, deixou-os por último, pois conta nova não pode ter prioridade sobre conta antiga.
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Após olhar todos os envelopes, recebendo-os como tapas na sua vergonha, viu que os carnês não eram contas. Foleando-os pode ver uma porção de destinos, Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, e um inacreditável destino final para o Tahiti na paradisíaca Polinésia Francesa. Quando Juca olhou o timbre da VASP, percebeu que eram duas passagens para uma maravilhosa volta ao mundo, um sonho de infância frustrado pela péssima situação financeira de Juca.
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Então Juca lembrou que Ediwancley, um amigo seu, frequentador antigo do Bar do Boto, havia lhe dito que havia indicado Juca para um concurso de passagens. Como Ediwancley tinha uma porção de milhas acumuladas, resolveu indicar Juca para o concurso. Bendito Ediwancley, que até então não passava de um chato de bar.
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Junto com as passagens, uma carta de uma agência de turismo solicitando a presença do beneficiário para confirmar as passagens e as datas de embarque. O contratempo é que Juca deveria estar presente naquela data, as 19:00 horas sob pena de perder o direito ao embarque dos sonhos.
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Juca deu pulos no sofá e dançou com um vaso de flor. Fez batucada com a garrafa térmica e beijou a foto de Ivete Sangalo convidando-a para uma viagem em torno do mundo. Como não podia controlar seus impulsos, ligou para a ex-namorada e disse que não queria mais também, pois iria fazer uma viagem pelo mundo. Ligou para o chefe e mandou-o relaxar o esfincter.
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Do homem que chegou vendo a beira da cascata, a um sonho voador em poucos minutos, Juca desceu correndo as escadas do prédio, dançando com os degraus e cantando para os cantos dos patamares. Seu celular virou uma espécie de microfone do sucesso, e ele se sentia uma mistura de Fábio Junior com Antônio Banderas. E como o celular lhe provocava, resolveu ligar para o gerente do banco e perguntou se queria fazer uma viagem. Quando o gerente disse que sim, riu alto pelas escadarias, e disse: Sim, você tem restrição cadastral no meu conceito.
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Ainda rindo por ter ido à forra, ligou para a imobiliária e disse que poderia entregar o apartamento no dia seguinte, porém, mediante um acordo. A imobiliária perguntou qual. E ele respondeu que entregaria o imóvel mobiliado inclusive, mas sob a condição do proprietário enfiá-lo reto a dentro. E enquanto a moça da imobiliária esbravejava, novamente Juca riu alto.
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Chegou à agência de turismo bonito, cheiroso e sorridente, e ainda na exata hora marcada. Sentou-se à frente da gerente, e identificou-se como Senhor Juca, aquele das passagens. Na realidade ele após uma vida carregada, estava realmente sentido-se o tal do Senhor Juca, quem sabe a primeira vez em toda a sua vida.
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A gerente o recebeu de forma atenciosa. Pediu seus documentos para o preenchimento das passagens, e enquanto isso falava ao telefone, informando da celebridade que estava presente ali. Após quinze minutos de espera, a secretária lhe oferece um café. Ao erguer os olhos acima do generoso decote, Juca encontra uma belíssima morena de olhos verdes, cabelos pouco abaixo do ombro, e um sorriso mágico.
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Ao lembrar de sua condição de sol-tei-ro, Juca não exitou, e convidou-a para lhe acompanhar na agradável viagem. A secretária sorriu, o que parecia ser um aceno com a possibilidade de um gostoso sim. Juca, o solteiro das passagens, viajaria acompanhado de uma bela morena de olhos verdes. Ela combinaria com o resto da decoração natural do Tahiti.
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E na agência todos pareciam estar comemorando a glória de Juca, tão merecedor, e tão humilde, que tinha o direito e a legitimidade para ganhar o prêmio. Uma vida dolorida, de requebrar as juntas e os molejos, capaz de desconjuntar a mais sólida espinha, fazia de Juca o exato vencedor, aquele que não só ganha, mas aquele que também sempre mereceu ganhar.
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Enquanto isso, a sorridente gerente ia e voltava, sempre deixando Juca hipnotizado pela secretária escultural. Quando voltava, telefonava para empresas, hotéis e a direção do grupo, inclusive da VASP. Juca percebeu que o que estava ouvindo antes, e que pensava ser o turbilhão da cachoeira, na realidade era o agradável som da turbina de uma avião que o levaria para ouvir os sussurros do mar dos sonhos.
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Passada mais de uma hora ali, após uma estranha ausência de dez minutos, a gerente volta, e meio gaguejando informa que estava encontrando alguns problemas. Juca foi respondendo a ela as perguntas que surgiam, e depois de cerca de meia hora de absoluta enrolação, o telefone toca. A gerente diz sim senhor, não senhor, entendi e eu providenciarei.
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Olhando para Juca a gerente diz: Lamento Senhor Juca, mas houve um mal entendido e o Senhor não é o beneficiário dessa promoção.
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Juca então se revolta e pergunta como não. Recobrando a compostura de alguém que faria uma viagem que só magnatas fazem, acalmou-se e disse que tudo seria resolvido ali, pois ele era o ganhador sim, relatando como encontrou as passagens em seu apartamento.
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Ela pergunta novamente:
O senhor mora no centro?
Ele responde que sim.
Na Rua Fabiano Bonaroski?
Ele responde positivamente.
No Edifício Marco Puppo?
Ele acena com a cabeça.
No décimo quarto andar?
Sim novamente.
No apartamento 1401?
Juca, sentindo um abacaxi verde voltando de ré pela sua garganta, responde que não. Na realidade ele mora no 1402.
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Ela então responde que lamenta, mas houve um pequeno equivoco na entrega das passagens.
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Juca é tomado de um ódio que explode em palavrões. Depois de cinquenta sonoros “Puta que Paris”, cerca de duas dúzias de denominações variadas para o órgão genital masculino, uma dúzia de femininos, seis lazarentos e três desgraçados, ele se vê segurando o colarinho branco da gerente.
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Seguranças começam a despencar das paredes, e aparece uma câmera focando na cara de Juca. Quando Juca está prestes a finalizar a gerente, percebe-se que ela está rindo e chamando uma tal de “Produção”.
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Quando Juca engole um pouco de oxigênio, percebe uma multidão rindo, enquanto a gerente tira a peruca loira identificando-se como a apresentadora Sílvia Silva Santos, do Programa “Chegou a Sua Hora” da rede Tupiniquim de Televisão Digital.
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Os amigos de Juca começam a aparecer saindo de trás dos biombos, e não demora muito para a gerente falar como se estivesse declamando em um comercial de creme dental:
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- Parabéns senhor Juca! O Senhor participou da pegadinha de Primeiro de Abril, do programa “Chegou a Sua Hora”, no quadro “Eu Armei Para o Meu Melhor Amigo”.
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Dentre os amigos, Ediwancley se aproxima com os olhos molhados de tanto rir, e ainda sem fôlego, ri e curva-se apertando a barriga, contorcendo-se em descontrole, tudo isso sem tirar a mão do ombro de Juca. A apresentadora do programa então informa Juca de que Ediwancley foi o amigo cúmplice da brincadeira, ao que, todos respondem com uma calorosa salva de palmas, acompanhada de um coro tímido de Edi, Edi, Edi. Parece que Ediwancley havia feito alguns amigos durante a preparação do trote.
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Enquanto olhava a situação, o eco dos palavrões ditos por Juca momentos antes, lhe impede de falar qualquer coisa para seu amigão. E ele tenta decidir se dará o grande soco com a mão direita ou a esquerda, no nariz, no queixo ou no olho. Também resta a ele uma dúvida, sobre o que deveria fazer com a tal da Sílvia Silva Santos, tendo até a vontade de enfiar-lhe a mão dentro das calças e saber se ela também usava peruca nas partes pudendas.
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E no meio daquela balbúrdia, Juca viu-se com um avental xadrez e com uma lancheira do Cascão, mijando-se nas calças. A lembrança da maior vergonha de sua vida, com a trilha sonora dos cruéis amiguinhos rindo, havia lhe surgido real em sua memória. Tentando pensar em alguma coisa boa, Juca lembrou-se apenas de suas três reprovações no vestibular, e do dia que um indecente bateu o carro na traseira de seu fusca. Juca ainda tentava buscar uma memória boa, mas é interrompido pelo celular, que ao ser atendido, trás a Juca a voz gritada de seu ex-chefe: Você está demitido! Também não demora para o telefone tocar novamente, e dessa vez era a ex-namorada de Juca. Ele não a atendeu. Mas logo depois o identificador da chamada escrevia na tela do seu celular: Imobiliária.
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Juca então percebeu que o programa era transmitido ao vivo. Seu sangue esfriou e ele percebeu que estava sendo assistido pelo Brasil inteiro em uma espécie de concurso “O Otário do Ano”.
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Juca engoliu a raiva, e com a frieza do Bandido da Luz Vermelha, com a simpatia de Hugo Cháves, e ainda a agilidade mental de Rafinha Bastos, perguntou então se poderia falar alguma coisa no programa. A sorridente Sílvia Silva disse que claro que sim.
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Juca pegou o microfone, foi até a câmera e começou a falar:
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- Excelente a brincadeira. Uma pena que eu não tenha sabido brincar, pois ao pensar ser o ganhador destas passagens, eu vendi tudo que tinha por uma bagatela, perdi meu emprego e minha namorada, e fiquei sem ter onde morar. Também não vou deixar de contar que tudo isso que fiz agravou de forma definitiva o meu caos financeiro, e vendo agora que sou motivo de gargalhadas no Brasil inteiro, sinto já os primeiros sintomas de uma depressão profunda que vai me levar a cortar os pulsos, isso se eu conseguir algum dinheiro emprestado para comprar a navalha. Queria agradecer a esse filho de uma puta do Ediwancley, esse meu amigão, por ter me aprontado essa. Mas não é só, vendo aqui essa corja de amigos vagabundos, eu agradeço por não terem me advertido dessa armação. E à Rede Tupiniquim de Televisão, eu agradeço por ter acabado com minha vida para alcançar um recorde de audiência, e ofereço a transmissão ao vivo de meu suicídio em troca da compra do caixão, um terreno em algum cemitério da periferia, e uma lápide em mármore escrito em Arial 72 dourado “Vão tudo tomar no meio do seu cú seu bando de filhos de uma puta”.
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Um silêncio surge no cenário, e a apresentadora chama os comerciais.
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Entrou um intervalo comercial de quase uma hora, que repetia exaustivamente a propaganda de uma espécie de processador de frutas, uma câmera digital barata, e um grill com o nome de um lutador. Enquanto isso, os espectadores do programa ficaram aguardando o retorno do programa, mas após o intervalo que repetia "Ligue Já" e uma oferta para "Os primeiros dez telefonemas", o programa foi encerrado do estúdio, e a transmissão do local nunca mais retornou. .
Segundo comentários, Juca procurou um advogado e propôs uma ação de indenização moral e material contra a Rede Tupiniquim.
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Então o caso despertou o interesse de toda a imprensa, exceto da Rede Tupiniquim de Televisão Digital. As demais fizeram uma cobertura que deu destaque em todos os telejornais.
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Buscando informações sobre o assunto, alguns repórteres chegaram até Ediwancley. A ação não chegou a ser julgada, mas segundo informações do assessor de Juca, o próprio Ediwancley, ele deixou de falar sobre o caso há cerca de seis meses, quando saiu de viagem para a Inglaterra.
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Indagado sobre a possibilidade de entrevistar Juca sobre o caso, Ediwancley então disse ser impossível atualmente, pois Juca está de férias no Tahiti, e só retornará em seis meses, quando anunciará a compra da Rede Tupiniquim de Televisão Digital, que passará a se chamar Rede Juca de Televisão.
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Após a entrevista, quando o microfone estava desligado, Ediwancley confirmou que Juca estava acompanhado no Tahiti, porém não poderia divulgar o nome da mulher por questões de segurança. Quando lhe foi perguntado se poderia dar alguma pista dessa mulher misteriosa, Ediwancley só informou tratar-se de uma jovem morena de olhos verdes, e que sua aparência combina com a decoração natural da Polinésia Francesa.
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Informantes dizem que Ediwancley recebe um salário mínimo para trabalhar como assessor de Juca, como forma de cumprir um acordo judicial também.
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Quanto a apresentadora do programa “Chegou a Sua Hora” dizem que ela casou com o motorista da linha CIC Boqueirão, mas seu relacionamento atualmente está passando por dificuldades, pois a família está com problema de alcoolismo.
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A ex-namorada de Juca é professora de uma escola da periferia, mas está de licença segurança atualmente. Ela casou com um jogador de futebol com os dois joelhos estragados, e atualmente sem contrato, mas com uma proposta de um time da terceira divisão do Espírito Santo.
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Quanto ao programa, nunca mais voltou ao ar depois da venda do último daqueles processadores de fruta.
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Quanto ao processador, hoje mudou o nome para Juca Juicer, que é anunciado junto com a Juca Cam e com Juca Grill.
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Se fosse verdade, restaria a certeza de que audiência não é tudo, exceto quando ela é parte de um procedimento judicial. E também não seria tolice dizer que devemos tomar cuidado com o que fazemos com nossos amigos.
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Mas tudo isso não passa de um sonho bem humorado de alguém que não tem tempo para dormir.

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